A arte de olhar para o outro - o problema do diálogo intercultural


Aquele que preceitua, a priori, a impossibilidade de interpretar a cultura alheia, de compreender adequada e genuinamente o outro, e, portanto, de poder cooperar e conviver satisfatoriamente, já incorreu, de saída, numa contradição in actu: enunciou categoricamente a impossibilidade de interpretar o outro, sem perceber que está dando uma resposta conclusiva (interpretativa, aliás) a uma questão que pretende derrubar como falso-problema.


O equívoco não pára por aí. Para advogar a incompreensibilidade de qualquer cultura por parte de uma outra, ele elaborou uma noção de cultura enquanto algo absolutamente inapreensível, aduzindo, para tanto, o critério da subjetividade histórico-cultural daquele que interpreta: ele diz, portanto, que a minha interpretação de uma cultura alheia é sempre subjetiva, sempre minha, sempre referenciada a mim, de modo que irá deformar ou mesmo não tanger o fato que é a vigência daquele sistema cultural.


Contudo, a partir de uma "questão de fato" (para utilizar de uma idéia kantiana), isto é, partindo da efetividade hodierna de ciências culturais como sociologia e antropologia, vê-se que esta concepção incorre em outro paradoxo imanente: o de considerar que a cultura, não obstante sua objetividade em face daquele que a interpreta, é subjetividade em si mesma, donde a sua singularidade incomunicável. Esta idéia, além de partir de uma noção anacrônica e inapropriada de subjetividade e objetividade, incorre ainda no erro de desconsiderar o fenômeno da intersubjetividade. E a intersubjetividade não caracteriza a cultura: ela é a própria cultura.


Entretanto, esta tese pode ser deixada entre parênteses para que se observe as conseqüências de um discurso que nega a possibilidade radical de uma interpretação heterocultural (da cultura alheia), e, com isto, de todo diálogo cultural. Ou seja, do discurso que prega que a cultura é subjetiva e pronto.

Assim, consideremos a cultura como uma espécie de subjetividade dilatada, compartilhada pelos indivíduos, e que seja acessível em seus fundamentos somente àqueles cuja subjetividade foi por ela constituída. Digamos, pois, que indivíduos de duas civilizações diferentes difiram entre si como duas espécimes animais não aparentadas na árvore filogenética.


Pensando desta forma, o que nos resta? A própria exterioridade de uma cultura em relação a outra implica num estar-aí ao lado, pois a cultura estrangeira não reside num outro planeta ou universo, mas aqui e agora, mesmo que seja o agora da rememoração histórica.


Ademais, a interação ao menos superficial entre as culturas é fato que deve ser incluído na análise, na investigação. Alguém poderia argumentar que esta pretensa interação entre as culturas é uma pseudo-interação, e que, em lugar de ação sobre a outra, cada cultura exerce em verdade um recolhimento, uma ação interna, de auto-afirmação e imunização frente à cultura alheia.


Poder-se-ia ir mais longe ainda, e dizer que a pretensa invasão de uma cultura pela outra, é, em verdade, uma apropriação, uma substituição cultural dentro de um espaço social; em outras palavras, que toda incorporação de elementos culturais estrangeiros significa simplesmente uma ilha de cultura invasora dentro de uma cultura invadida, ilha a partir da qual ela pode expandir ou aniquilar-se, jamais integrar-se.


Semelhante discurso, no entanto, teria que partir de um conceito de cultura que excluísse toda e qualquer possibilidade de derivação. Teria de negar a existência do fenômeno do sincretismo e do ecletismo. E por fim, negaria a cultura a capacidade de adaptação, para a cultura dita invasora em solo alheio, e de integração da cultura dita invadida em solo próprio.


Sob toda esta argumentação, incide uma falsa noção de objetividade, que reifica a cultura, por não ter a capacidade de compreendê-la como fenômeno. E quando emprego aqui a distinção, o faço para distinguir o objeto reificado, no qual a temporalidade é linear e superficial, do fenômeno autêntico, cuja temporalidade é rítmica e profunda, temporalidade que naquele é extrinsecamente vigente e neste intrinsecamente constitutiva.


Assim, percebe-se que, embora a questão do diálogo inter-cultural apresente desafios tanto à teoria quanto à práxis, é possível pensá-la e realizá-la em moldes legítimos, embora perfectíveis. Para tanto, porém, há que se evitar a adoção acrítica de pressupostos inviabilizadores, dos quais alguns foram aqui apresentados a título de exemplo. E este é um problema da máxima importância no milênio nascente, uma vez que a paz da práxis é sempre filha da paz da teoria, da inter-compreensão, que se chama Diálogo.  

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