Fé e Razão: de Platão a Agostinho, de Aristóteles a Aquino - parte I


 1 Introdução

A idéia de fé é relativamente estrangeira em relação à civilização helênica, em seu período clássico – ao menos, no que se refere à sua autocompreensão teórica1. Isto, porém, não significa que a realidade o seja, uma vez que a sua experiência radica nas raízes mais profundas do ser humano, para além de quaisquer quadrantes culturais, e talvez mesmo até onde ela pareça estar ausente.

Em contrapartida, a reflexão da civilização cristã, gestada e nutrida no berço da latinidade, desde sempre acolheu a fé com centralidade, na tentativa de justificá-la tanto perante a tradição cultural secular, quanto em face das demais religiões já vigentes nas latitudes sobre as quais incidiu a pregação do Evangelho.

Esta diferença visceral de perspectiva impermite a tentativa de postular, como problema para uma investigação histórico-crítica, a questão das relações entre fé e razão nos mundos helênico e cristão. No entanto, um simples recuo de um passo desvenda um denominador comum, uma mesma crisis a perpassar os séculos de fundação dos dois horizontes civilizatórios: o problema da relação entre pensamento religioso e pensamento filosófico. Isto sim, constituiu perplexidade comum a um e outro, e quiçá conglobe a própria Modernidade tão pretensamente secular e profana e – por que não? –, a caleidoscópica Pós-Modernidade.

Nos gregos, o aludido problema foi luminarmente expresso na parêmia mythos x logos2, ao passo que, para os cristãos, o mesmo se corporifica na distinção entre fé e razão. As interpretações simplistas tendem a reduzir um dos lados ao outro, ou então identificá-los pólo a pólo. Ainda que tais hipóteses não sejam necessariamente falsas (uma vez que podem ter, de fato, se materializado em determinado tempo e lugar, em algum filósofo, seita ou nação), também não são aprioristicamente veradeiras, e nem frequentes: as quatro noções (e suas respectivas realidades) constituem um quadrado "mágico", a desafiar a compreensão dos sábios.

Por isto, o presente estudo buscará efetuar um breve apontamento do gigantesco problema da relação entre religião e filosofia, na Hélade e na Catolicidade, tomando por exemplo e fio condutor as transições de Platão a Agostinho e de Aristóteles a Aquino. Para tanto, porém, fará o contraponto a partir dos textos dos dois pensadores cristãos, tentando identificar remanescências e mudanças nas opiniões destes em relação aos seus predecessores e inspiradores no tocante às quatro noções indicadas. Servirão como parâmetro os opúsculos Sobre a Natureza do Bem, de Agostinho, e Sobre a Eternidade do Mundo, de Aquino.

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