E a carne se fez Nelson



Quarenta minutos antes da fecundação, lá já estava Nelson. Seu espírito, que soube ir até o fim mais recôndito de nossos segredos, ao esconderijo mais abscôndito de nossas mazelas, antecipou-se a si mesmo, para acompanhar os mil pequenos desdobramentos daquele encontro de almas e corpos que o engendrou, e do qual ele era fim e retorno ao princípio. Como todo gênio, Nelson chegou primeiro, e aguardou pelo Futuro que, claudicante, veio ao seu encalço.

Neste seu mais-que-ser estava sua glória e sua sina. O Verbo, ao vir à carne, se fez preceder pelo anúncio do Anjo Mensageiro. Nelson, o anjo pornográfico, também foi um mensageiro a seu turno, destinado a trilhar a contramão do céu, levando a carne ao verbo e à frase, o sexo à boca. Divino a seu modo, de tão terreno, de tão humano... Mas pagou um alto preço por isto.

Por causa de uma fruta, Adão perdeu a abundância e a inocência, Eva ganhou a dor e a culpa, a serpente foi para o Inferno, e Deus teve que sair do seu descanso e costurar vestes de pele. Nelson conseguiu ser odiado por todos: pela serpente-Eros, cujas astúcias e ciladas ele delata, implacável; pelo desejo-Eva, cuja fragilidade e culpa ele não cansa de reportar; pelo ego-Adão, cuja mentira e covardia não lhe escapam ao olhos; e pelo deus-moral, cuja precária autoridade ele soube desmascarar, mostrando-o imundo e nu.

Mas, e quanto à árvore do conhecimento do Bem e do Mal? Quem tem olhos de ver, já deve ter percebido que ela nunca deixou de existir. Do ventre telúrico de Gaia, vez por outra ela cospe gênios denunciadores, iconoclastas dos velhos paraísos carcomidos, destruidores da ilusão e do engodo de ora e de outrora. Sim, Nelson foi uma encarnação do fruto proibido. Encarnação? Em verdade, não: enverbação. Descarnecimento. Escarnecimento. Reverberação.

Por causa de uma fruta, Adão tornou-se um ser pensante e criador, Eva aprendeu a amar e a cuidar, a serpente inventou a Linguagem, e Deus permitiu a História. Em verdade, vos digo: Nelson, no fundo, foi amado por todos. A palavra-anseio nele serpenteou fogosa, da interjeição do gozo à frase sussurrada, picando Césares e Cleópatras, entre ondas sonoras e ondulações de seios. O feminino-humano, na mulher e no homem, com ele soube descobrir sua força e seu poder, desdenhando das pueris acusações do velho patriarcado, algumas proferidas por sua própria boca de machista puritano e preconceituoso. O masculino-humano nele entreviu uma chance de despedir-se do carrasco implacável do macho vencedor, ao mostrá-lo derrotado, mesmo em face da vitória fácil, na tola vaidade do triunfo sexual. E o deus-espírito, o mistério criador do tempo, a insondável transcendência do ser, humana e supra-humana, nele se viu glorificada, como conduta e destino, nas tragédias da vida privada: nas pequenas bravuras, no incesto e no crime, na 
renúncia e na fuga, e sobretudo no Amor.

O que esperar de um homem, assim, superlativo? Obviamente, acertos e erros, ambos desmarcados e viris, ambíguos. Mas, mesmo nestes últimos, o velho mestre nunca está destituído de razão, pelo contrário. Ele vivia e atuava em meio à hiperbole, ao detalhe, ao exagero. Sua crítica e sua denúncia tem umas boas doses de acerto e, quando há erro, muitas outras (tão boas quanto) de humor.

Tudo é uma questão de ênfase. Nelson foi um artista do olhar microscópico, da devassa e da denúncia quotidianas: da árvore à folha, rumo à mais diminuta nervura: da história ao caso, à aventura, à ação, muitas vezes chegando ao gesto ou ao mero anseio. Sua miopia foi-lhe, a um só tempo, trunfo e chaga: permitiu-lhe ver poesia no prosaísmo do futebol, mas também ofuscou-lhe, vez por outra, o fundo longínquo do social por trás do homem de nervo e carne.
Isto talvez explique sua censura (algo confessional) ao intelectual tupiniquim. Os artistas, por tentação e tendência, costumam ser míopes: nasceram para cantar, pintar, mostrar a árvore, mesmo quando buscam a paisagem. Em contraponto, o estudioso e o analista vieram para enxergar o longe e compor o panorama: por isto, amiúde, perdem o detalhe, e não vêem a cisterna à sua frente...

Certamente, há traços (muitos) de pensador no artista, e vice-versa, e Nelson é exemplo disto. Porém, nunca se lhe verá a panfletar com a arte (embora, algumas vezes, ele tenha panfletado, e com arte). Ele conseguiu denunciar a realidade brasileira sem discursar sobre ela, descrevendo-a até o pormenor: a opressão, a injustiça, a carência, o atraso, a violência, todas se tornam visíveis porque ele as mostra, simplesmente. Ele falou o Brasil. E o Futuro, que tanto o perseguiu, finalmente o encontrou, premiando-o por sua nudez, a caminho da Árvore da Vida.
  

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