A primeira visão equivocada do Espiritismo segundo Herculano Pires



Na introdução ao seu estudo magistral sobre a mediunidade na história, intitulado O Espírito e o Tempo, o filósofo brasileiro Herculano Pires apresenta, sumariamente, seis exemplos de visões equivocadas a respeito da Doutrina Espírita, esposadas por aqueles que não se ativeram a uma análise mais acurada da mesma. São elas: tentativa científica frustrada; sistematização de velhas superstições; imprecisa filosofia religiosa; crença; religião e superstição eivada de preconceitos mágicos. Comentemos, inicialmente, a primeira delas.


O espiritismo não é uma tentativa científica frustrada. De saída, registre-se que ele não é uma tentativa, um evento histórico circunscrito, uma qualquer empreitada passível de fracasso ou êxito, porém finita. Ele é uma instância civilizatória, uma doutrina e uma cosmovisão, a qual, embora irrompa em um determinado quadrante histórico-cultural, dele transcende para abarcar todo um passado precursor do qual é retomada e arremate, bem como para prelinear o horizonte temático de todo um porvir indeterminável, na poeira dos tempos.

Com suas falhas e limitações, com suas potencialidades ainda insatisfeitas, com os lineamentos a efetuar e acréscimos a impingir, a Doutrina Espírita apresenta-se como um quid a mais na eterna e infindável caminhada humana em busca das paragens do Espírito. 


Não se veja nestas assertivas uma mera apologia do Espiritismo, embora este elemento esteja aqui inegavelmente presente. Trata-se, acima de tudo, de salientar o aspecto mediante o qual a própria Doutrina se deixa inteligir e se auto-interpreta, desde a sua gênese - a sua proposta. Verifiquemos, pois.

Uma doutrina simplesmente revelada, como uma religião, pretende ser atemporal, supra-histórica, absolutamente transcendente...

Uma doutrina simplesmente elaborada, como uma filosofia, reconhece-se (ou deveria reconhecer-se) temporal, histórica, culturalmente imanente – inda que sua temporalidade seja multissecular, sua historicidade robusta e condicionante e sua imanência duradoura...

Uma doutrina simplesmente verificada, como uma ciência, pretende-se eterna, natural e supra-cultural; mas nem ela escapa à sina da finitude, pois, mesmo quando tange a verdade eterna, o faz com mãos feitas da carne do tempo...


O Espiritismo, em contrapartida, em que pese dialogar mui fecundamente com estas e com as demais instâncias diretrizes da civilização, tem natureza, escopo e meta diversos que o peculiarizam.

Primeiro. De saída, note-se que se trata de uma doutrina revelada, sim, mas segundo um método de revelação que apresenta suas condições de repetibilidade científica e verificação técnica. E que, inclusive, permanece aberto à discussão epistemológica quanto aos meios e regras a seguir na investigação de tais fatos.

Segundo. É uma doutrina elaborada, de fato, mas não incorre na inovação ex abrupto, no descontinuísmo puro e simples, mas rememora e aprofunda todo o conhecimento espiritualista que a precede: ela, propriamente, reelabora mais que elabora.

Finalmente, perceba-se que ela erige critérios de verificação (questionáveis, mas plenamente justificáveis); contudo,  interioriza reflexivamente elementos para sua constante revisão e reformulação, no tocante à explicação dos conceitos já verificados, mas sempre melhor explicáveis pelas gerações vindouras.

Trata-se de uma doutrina, portanto. Mas não de uma mera tentativa de explicação dos fatos. Seu objetivo vai mais além: ela postula as condições de possibilidade de toda doutrina explicativa dos fenômenos e não-fenômenos espirituais. Para falar com Kant, digamos que ela é uma doutrina transcendental, que versa mais sobre as condições de existência do seu objeto, e de possibilidade do seu conhecimento, do que sobre as minudências constitutivas de suas essencialidades ou fenomenalidades. Uma doutrina meramente explicativa é prenhe de asserções do tipo “isto é assim”. Uma doutrina transcendental apresenta condições para que se determine que “isto possa ser assim ou assado”.

O espiritismo, portanto, é uma espécie de meta-doutrina que coaduna-se com qualquer espiritualismo - religioso, filosófico ou cientifico - que coadune com seu corpo de postulados fundamentais. É neste sentido que León Denis pôde responder, na Questão 118 de sua Síntese Doutrinária que o Espiritismo não é a religião do futuro, mas "o futuro da Religião... a mais alta e mais científica forma de espiritualismo".

Evidentemente, o Espiritismo tem sido tratado, por muitos de seus adeptos, como uma doutrina revelada ao lado de outras, como mais um postulante ao poder na República das Idéias. Tem sido vivido como religião ou como filosofia.


É justamente por não ser uma tentativa que o espiritismo não pode ser científico. Nem não-científico. Não há uma ciência materialista, católica, comunista ou espírita. Há a ciência, intransitiva e inadjetivada, munida de métodos (ou pseudo-métodos) praticados por conjuntos de indivíduos que partilham, no todo ou em parte, blocos de postulados explicativos dos objetos e critérios determinantes dos procedimentos investigativos.

A verdadeira ciência adoece quando se inquina de pressupostos limitadores, asserções taxativas e preliminares do tipo: “não pode ser assim”. Isto não cabe apenas aos investigadores não-espíritas, com relação dos postulados desta doutrina; cabe, igualmente, ao cientista que partilha da ontologia e da epistemologia descortinadas pelos postulados espíritas: muito dos nãos que ele internaliza não estão nestes postulados, mas na interpretação de adeptos e estudiosos da doutrina.


E por não ser nem tentativa e nem científica, a doutrina espírita também escapa ao julgamento atribuidor de fracasso. Ela não só não é um empreendimento frustrado, como, ainda, se destina e se propõe a determinar um conjunto de critérios aferidores do êxito ou o fracasso de tentativas doutrinárias específicas no campo da intelecção dos fenômenos espirituais.

Frustradas, sim, têm sido todas as tentativas de frustrá-lo, como o tem sido todas as investidas contra o conhecimento, de todos os matizes, perpetradas por todos os reacionários do establishment materialista e sua pauta imediatista.






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