A segunda visão equivocada do Espiritismo, segundo Herculano Pires



O caráter sistemático, embora aberto, da Doutrina Espírita, é um dado admitido razoavelmente até mesmo pelos seus opositores. No entanto, não faltam aqueles que a consideram, como recorda o velho Herculano, uma “sistematização de velhos preconceitos”. Porém, como se há de ver, esta acusação incorre na triste sina da auto-condenação: ela própria é um velho preconceito sistemático.


Antes de mais nada, é preciso que se esclareça o que se deve entender por preconceito. Será uma concepção prévia de um tema ou realidade que não se conhece? Será um julgamento não-conceitual (um pré-conceito)? Ou será uma simples opinião favorável ou pejorativa sobre o mesmo?


A primeira das acepções se afasta logo de saída: o espiritismo não pode ser uma concepção prévia dos fenômenos espirituais, uma vez que ele constitui uma longa explicação dos mesmos, com uma ampla conceituação dos seus elementos fundamentais. Ou seja, ele é conceito. Além disso, sua elaboração doutrinária se dá, justamente, em meio à própria praxis do intercâmbio mediúnico entre os planos físico e astral. Ou seja, ele não é prévio exame teórico da coisa, como teria ocorrido àquele jovem estudante de uma velha anedota alemã, que queria aprender a nadar antes de entrar na água...


Por razões semelhantes, ele também não representa um julgamento antecipado de seus supostos objetos, quer em sua realidade efetiva (para quem os admite) ou em sua aparência de efetividade (para quem os desacredita). É o que decerto pensam-lhe os detratores, na medida em que o inquinam de erigir um julgamento prévio de objetos que simplesmente inexistem, de fenômenos inverificáveis. Contudo, veja-se que o viés doutrinário do Espiritismo é, predominantemente, descritivo: são apresentados fatos, com suas condições de verificabilidade, para que o analista e o intérprete possam, então, fundamentar e motivar as suas asserções e julgamentos. Ele, inclusive, arrola uma série de mecanismos para a contínua reformulação de julgamentos, com vistas a uma sempre maior fidedignidade da observação.


Finalmente, o Espiritismo exorbita tanto da simples apologia de postulados metafísicos ou de artigos de fé, quanto da censura ou refutação de pontos doutrinários opostos, religiosos ou não. É sua tarefa, de fato, constituir uma macro-apologia das virtualidades de todas as doutrinas científicas, filosóficas, religiosas do ontem, do hoje e do amanhã, interiorizando reflexivamente os aspectos por elas descortinados que coadunem com o cômputo geral dos princípios estabelecidos por Allan Kardec. Não obstante, ela não o faz mediante a crítica sumária dos aspectos discordantes ou da defesa simplista das convergências: cuida-se de compreender o sentido e o alcance das doutrinas que com ele dialogam, absorvendo o melhor de cada qual, e oferecendo elementos para o robustecimento delas mesmas, em contrapartida.


Por seu turno, a verdadeira crítica espírita é auto-referente: ela se destina às interpretações equivocadas, às lacunas, obscuridades ou contradições na apresentação dos temas, nos vícios de leitura ou nos hábitos enviezados com que possam ser mal entendidos os princípios, etc. Nada mais infenso ao preconceito do que a admissão da sua própria finitude e perfectibilidade, as quais implicam uma atitude não-condenatória com relação às limitações alheias, bem como a humilde recepção das verdades deparadas noutras plagas.


Assim, portanto, em vez de arranjo sistemático de velhos erros do pretérito, o Espiritismo nos surge como um sistema, sim, mas como um sistema aberto, voltado para o futuro, a acolher verdades seminais a florescer diuturnamente em novas descobertas. Como outras doutrinas sistêmicas e abertas, como a teosofia, a rosacruz, a antroposofia. Com proximidades e afastamentos em relações a estas e a outras doutrinas e sistemas mais fechados. Com e para além do conceito. 

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