Seria a corrupção a maconha do povo?

Os adoradores da “sabideza” alheia, pronta e descontextualizada, costumam lançar mão de frases de efeito para inflar e camuflar, em seu discurso, tanto a pobreza das opiniões, quanto a pobreza de opiniões – e olhem que eu sequer falei de ideias...

Nessa estratégia-do-algodão-doce, se lê e se ouve por aí que “a religião é o ópio do povo”, chavão desgastado com o qual alguns ateus recém-convertidos (sim, convertidos...) julgam ecoar um grito que Marx não deu. E o que é pior: demonstram, com isso, uma dupla incompreensão, tanto da religião quanto do próprio ateísmo, o qual, algumas vezes, pode assumir, com acerto ou com erro, a forma de uma “crença negativa”: uma crença no não-deus, no nada, no não. Pois é: o ateísmo, quando não constitui resposta corajosa ao problema do “sentido da vida”, mas a covarde desistência de buscá-lo, costuma ser “o ópio da elite”.

Mas não é do ateísmo que eu vim tratar: é muito fácil encontrar tiradas anti-ateístas igualmente pobres como esta, e que também são incompreensões, tanto do legítimo ateísmo, eterno e valioso interlocutor da religião, quanto dela mesma: a crença passiva num discurso religioso, distinta da autêntica experiência religiosa da , muitas vezes não passa de uma crença formal, vazia, hipócrita, que se indistingue da não-crença.

É da corrupção, enfim, que eu falarei. E a alusão a Marx, grande pensador da política, se justifica pela questão proposta no título deste texto. Enfrentemo-la, pois.

Na pauta de hoje e na ordem do dia, o tema é lembrado por conta do julgamento da ação penal 470 do STF, o famigerado processo do Mensalão. Mas a pancada vem de longe... muito longe.

A semente da corrupção foi aqui plantada por Cabral e sua frota. Regada desde o primeiro escambo entre nativos e europeus – consumidores e traficantes, nesta ordem, veio ela florescendo, ao longo do tempo, nas capitanias e missões, entradas e bandeiras – e sendo continuamente alimentada pelo pacto colonial. Não é só no pretório ou no parlamento que ela se entoca, não...

Alguma coisa aí em cima já nos lembraria, de saída, a tal da maconha, que provoca alguns efeitos psicodélicos desde a semente, embora mais fracos. A metáfora do florescer também procede, e muito: a maconha, para quem não o sabe, é uma flor: a flor da espécie cannabis, inclusive da subespécie sattiva. Mas, será que isso basta pra garantir a tal comparação? Prossigamos.

Na lógica da coisa, passemos da flor aos frutos – e os da corrupção são bastante numerosos. Do troco não dado à nota fiscal sonegada e ao dia útil enforcado, a lista inclui um grande número de práticas corrompidas que, de comuns, tornaram-se normais. E não nos iludamos: a normose da rotina é uma espécie de lombra a fogo brando que não nos deixa ver o que estamos fazendo (ou deixando de fazer). Mais um ponto a favor da tese exposta no título.

Como erva daninha que parasita o solo alheio para sobreviver, a corrupção se disseminou pelo tecido social, e sufocou os seus mecanismos de pensamento e expressão. O bom senso a camufla sob eufemismos como 'dissimulação', 'jeitinho' ou 'esperteza'. A cidadania vê distorcido o seu conceito essencial da reciprocidade em práticas como as da 'camaradagem' e da 'permissividade'. Até mesmo a religião (olha ela aí!) tem sido distorcida, e muito – quer em seus feriados e festas santas, que viraram carnavais e comilanças pascoais, quer também no interessante esquema popular de 'pecar a semana inteira, e ir pedir perdão na missa'.

Aqui, porém, a nossa alegoria começa a desandar: a cannabis não somente não é uma erva daninha ou parasita, como é, segundo os produtores, uma vítima fácil delas. A papoula, a fonte natural do ópio, esta sim, é uma planta nociva a outras, em muitas de suas variantes – como a famosa “papoula do milho”... Seria a corrupção, em verdade, uma espécie de “papoula do povo”?

Esta nova comparação parece mais acertada. Ela, no entanto, nos reconduz a Marx: afinal, papoula e ópio, por serem realidades naturais tão próximas, devem constituir idealidades metafóricas, no mínimo, aproximáveis. Além disso, a corrupção é um fenômeno de natureza genuinamente política (mesmo quando só apareça na micropolítica amorosa entre mim e ti, ou na metapolítica espiritual entre o pecador e Deus).

Muitos religiosos, preocupados com a possível conclusão: “a corrupção é a fonte da religião”, logo me acusariam de incorrer justamente no erro que censurei nas primeiras linhas desse texto: o desvio e/ou a falta de contexto. E muitos ateus, embora concordem com a conclusão, também impugnariam este suposto salto conceitual da discussão religiosa para a política. Pois ele foi intencional. E não foi um salto, pois é de política que Marx está falando o tempo todo. Se não, vejamos.

A famigerada sentença que ora nos atormenta se encontra na Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Nesta obra, Marx não está avaliando a Religião enquanto discurso, que pode ser dotado ou destituído de verdade, mas enquanto instituição cultural com efeito frequentemente consolador (leia-se aquietador, apassivador) em relação às misérias e injustiças sociais.

Para ele, portanto, não é urgente decidir se Deus existe ou não, se este ópio é remédio ou droga alucinógena, mas acordar o povo para desistir de somente aguardar a outra vida (que até talvez exista), e cuidar desta (da qual os poucos da elite estão cuidando, enquanto ele, povo, apenas sonha com o céu).

É por isso que, mais adiante, o adorável pinguço da Baviera irá concluir que, na análise filosófica da coisa, a crítica do céu transforma-se em crítica da terra, a crítica da religião em crítica do direito, e a crítica da teologia em crítica da política. Ou seja, ele recomenda que passemos da crítica da religião corrompida pela política à crítica da política que corrompe a religião (e não só esta, mas a economia, a arte, o direito, a ciência...).

Deixemos, portanto, os religiosos e os maconheiros em paz. E que os amantes do ópio ou os entusiastas da papoula nos perdoem a metáfora... Que atentemos para a corrupção, sempre – e não apenas diante dos mensalões e mensalinhos, como nos turnões e semaninhas, no dia a dia, enfim. Sobretudo em nós, na diuturna overdose opiácea das conveniências.

Talvez tenha ficado claro porque comecei falando de religião: em verdade, esta foi uma primeira impressão, descontextualizada. E para quem ainda não tenha percebido, a breve digressão inicial sobre a importância do contexto também se explica: a distorção, a omissão ou a elisão do contexto também são rompimentos no campo das ideias: também são corrupções.

Agora sim, podemos falar de religião, e sem sair da política: pois, se a crença religiosa é passível de autenticidade ou farsa, de honestidade ou fraude, de justiça ou corrupção, a ação e a participação políticas também são passíveis de descrédito ou ceticismo (hoje, mais do que nunca). Mas, e pela mesma razão, também serão sempre passíveis de crédito, também de crença. Também de fé... Com ou sem papoula. Com ou sem maconha.

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