A moderna
biologia caracteriza o homem, ainda no velho molde aristotélico do
gênero próximo e da diferença específica, como um homo
sapiens, como um espécie
hominídia sapiente. Com esta definição, ela ainda se inscreve no
mesmo horizonte da concepção clássica do animal
rationale. É bem verdade que
ela o faz com um pequeno deslocamento "para a direita":
avança na especificação do gênero (homem não é simplesmente
animal, mas um animal vertebrado mamífero placentário primata
hominídio humanóide), ao tempo em que indetermina um pouco mais a
differentia, que sai
da estrita rationalitas
para uma mais ampla sapientia.
Em outras palavras, o homem é um animal que sabe (inclusive, que é
animal e que sabe).
Porém,
em que pese as eventuais diferenças de perspectiva acarretadas por
estas e outras tais concepções do humano, o fato é que mesmo as
reflexões mais tranversais sobre o homem tendem a iniciar a partir
da constatação de uma singularidade que o individualize no conjunto
dos demais entes. Assim, o homem é o animal que sorri, que finge,
que fala, que cria, que reza, que decide, que transa, que ama, que
duvida, etc. E, em todos estes casos e em quaisquer outros, além de
ser o ente quê, ele
também é o ente que sabe quê.
Com
Heidegger, a coisa não será diferente. Ele percebeu que uma
ontologia que tematize o homem em sua especificidade deverá, de
saída, reconhecer que ele é um (e talvez "o") ente
que sabe que é. Por saber que
é, o homem não simplesmente é: ele existe.
E é justamente por este saber do ser lhe
constituir uma nota essencial que o homem é caracterizado, em Ser
e Tempo, como um ser-aí
(um Dasein).
O ser-aí se relaciona com o seu duplo "saber" do ser (o saber que há
ser, e o saber que ele próprio é); e os diversos modos deste
relacionar-se (e a lista é grande: pré-compreensão, circunvisão, compreensão mediana, falatório desenraizado, compreensão elaborada em interpretação, consideração teórica, curiosidade dispersa e desamparada, tradição enquanto discurso já sempre pronunciado, consciência enquanto clamor, etc) implicarão outros tantos modos (ou sub-modos) de ser.
Diante
disto, percebe-se que há uma necessidade ontológica de
se colocar a questão do ser. O referido saber do ser nunca se dará
na forma de um já-sabido, de um conhecimento possuído, da mesma
forma que a vida nunca é no particípio: ela é um gerúndio (um
estar vivendo) tendendo e pretendendo ao infinitivo (ao viver
– mais, melhor, sempre).
Pode
até parecer um exagero assinalar uma tal necessidade ontológica,
uma vez que a a maioria das pessoas, em seu ser-aí, jamais se dá
conta de um tal questionar. Esta impressão, porém, decorre de uma
falsa compreensão do que significa necessidade. Pensa-se
nela como numa carência; mas
isto, embora não desarrazoado, é impreciso: a carência é um modo
da necessidade: a necessidade não satisfeita.
Não a esgota, portanto.
Uma
comparação ajudará a esclarecer. Biologicamente, a vida é sua
própria necessidade: o ser vivo necessita continuar vivendo. No caso
da vida organizada, a necessidade é permanecer organismo:
permanecer uma "vida feita
de vidas". Quando
perturbações locais, como perdas energéticas, danos estruturais ou
processos de organogênese irrompem contra a inteireza e a plenitude
desta totalidade orgânica, o organismo perfeito torna-se imperfeito,
e a necessidade satisfeita torna-se carência. E
eis a fome, a sede, a libido. A
saciedade, portanto, não elimina a necessidade: ao contrário, a
reconstiui. Ela desfaz
a carência, a
insatisfação.
Pois
bem: o homem, enquanto ser-aí, é necessariamente aberto
para a questão do ser. Ela constitui o seu modo de ser, mesmo que
ele nunca a torne explícita, num efetivo meditar aqui ou ali, mesmo que ele nunca lhe sinta a carência.
Ressalte-se, aliás, que aquele que nunca experimentou a carência nada sabe da plenitude. A maioria de nós, a maior parte do tempo,
vive inscientemente em meio a esta necessidade ontológica da questão do
ser, enquanto faz as perguntas
ônticas do cotidiano (o que fazer, o que comer, o que dizer, o que
comprar). É de ser, ou do ser, que sempre se trata.
A
necessidade impercebida, porém,
pode estar vigendo ao modo da carência ou
da saciedade (que não é plenitude): pode
ser, de fato, que eu não perceba que me faltam bases suficientes para
compreender o ser, que eu tenha somente a compreensão vaga legada
pela tradição e pelo senso comum. Ou pode se dar o caso de eu viver
em meio a um horizonte de sentido elaborado e articulado (como o de
uma religião, por exemplo), que providencie respostas profícuas
para questões cuja meditação implique um grau de consideração
razoável da questão do ser. Em todo caso porém, a questão do ser
é sempre recolocável, porque necessária. Fala-se porque há ser,
compra-se porque há ser, vive-se porque há ser. Sim, e.... ? E a carência. E a necessidade.
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