Livro dos Espíritos. Introdução. 2. O LE como Tratado de Ontologia Espírita


O título Ontologia é reservado ao conjunto de investigações filosóficas que tenham por objeto o Ser. A disciplina foi assim batizada por Cristhian Wolff, em 1729, numa obra homônima; porém, a sua preocupação e o seu mote sempre acompanharam a reflexão filosófica desde o seu longínquo alvorescer, nas paragens da velha Grécia.



Raras vezes, porém, a ontologia se dedicou única e exclusivamente ao Ser. Via de regra, ela também se ocupou dos entes que são ou não são, dos seus gêneros, modos ou graus de ser, de suas estruturas intrínsecas e relações extrínsecas, de temas como o surgir e desaparecer, a criação e o aniquilamento, etc. Em suma, a ontologia normalmente se apresenta sob a forma de uma teoria geral da realidade.



Neste sentido, o Livro dos Espíritos pode ser considerado um autêntico tratado de ontologia espírita. Uma simples olhada no título do seu primeiro Livro, “As causas primárias”, mostra que ele ressoa no mesmo diapasão do primeiro estudo aprofundado, na História da Filosofia, a respeito do ser enquanto ser: o conjunto de escritos aristotélicos sobre a filosofia primeira (prote philosophia) intitulado posteriormente de Metafísica. Esta, em seu livro primeiro, também se inicia pela busca das causas e princípios primeiros do ser.



As semelhanças, porém, não param por aí. No primeiro capítulo do Livro I do LE, Deus é considerado como a causa primeira de todas as coisas. O mesmo acontece na Metafísica, onde Deus é apresentado como o “Movente Imóvel”, como o iniciador de toda a série infindável de mudanças e movimentos, de nascimentos e mortes, de surgimentos e desaparecimentos, que constitui o mundo.



No entanto, apesar do compartilhamento da idéia-diretriz de Deus como causa, o pensamento do filósofo grego e aquele apresentado pelos espíritos codificadores diverge na interpretação acerca da natureza desta causalidade. Este tema será retomado quando do estudo daquele capítulo, em pormenor.



As afirmações acima, porém, não autorizam a conclusão imediata de que o assunto tratado no LE diga respeito unicamente à Ontologia. Outros temas de fundamental interesse filosófico também ali recebem atenção e detalhamento. Todavia, a Ontologia permanece como pano de fundo em todas estas reflexões a princípio não-ontológicas, de modo que nelas também vibra um pouco do perguntar pelo ser. Vejamos alguns exemplos:



a) No livro segundo, “Mundo espírita ou Dos espíritos”, há toda uma fenomenologia da individualidade espiritual (não confundir com a Fenomenologia do Espírito, de Hegel, cujos pontos de aproximação e afastamento com a doutrina espírita serão analisados noutro texto). O fenômeno não é o simples ser: ele é um ente em vir-a-ser, isto é, em processo, em devir ou devenir.



Uma tal fenomenologia, portanto, descreve “o acontecer do espírito enquanto fenômeno”, isto é, na sua dimensão fenomênica temporal, desde o seu surgimento ou Criação, passando pelas linhas fundamentais da sua Evolução, e tratando, neste percurso, de processos ou fases como a encarnação, a desencarnação, a erraticidade, o retorno à vida corporal, etc.



Ora, apesar de a ênfase cair, notoriamente, sobre o fenômeno espiritual, no sentido de descrever-lhe o vir-a-ser, ali também se encontram observações importantes a respeito do ser deste fenômeno. Isto significa que o estudioso atento ali desvendará elementos preciosos para dois capítulos da Ontologia Espírita: uma ontologia do espírito e uma ontologia do fenômeno.



b) No livro terceiro, “Leis Morais”, tem-se uma axiologia e uma deontologia espíritas. Axiologia é o estudo dos valores (Liberdade, Igualdade, Justiça, etc), ao passo que a deontologia implica o estudo das normas (obrigações e proibições) morais. Ambas as disciplinas não estudam diretamente o ser, mas o dever-ser: o valor deve ser realizado, deve se tornar realidade; a norma deve ser cumprida, deve ser respeitada.



Contudo, embora haja uma distinção primária e irredutível (ontológica, aliás) ente o ser (dos entes), o valer (dos valores) e o viger ou vigorar (das normas), estes “predicados supremos” são atribuídos ou excluídos dos objetos investigados sempre a partir da perspectiva do ser. Assim, a norma é vista como um ente normativo, o valor como uma entidade axiológica, ou seja, como entes em um sentido especial.



Além disso, valores e normas não são, na maioria absoluta das vezes, irrealidades inverificadas; ao contrário: verdade, caridade, justiça são, amiúde, realidades que são e devem continuar sendo, ou seja, são entes complexos que participam do ser e do dever-ser (valer e\ou viger). São entes que, sendo, podem, inclusive, vir-a-ser (a igualdade existente pode vir a ser mais plena, a justiça pode vir a ser outra, a caridade pode vir a se universalizar, etc).



No caso do Livro dos Espíritos, aliás, há uma singularidade especialíssima. As Leis Morais não são como as normas morais de uma cultura ou como as leis jurídicas vigentes num país. Estas devem ser respeitadas, mas podem ser violadas. As Leis Morais, não: ou elas são cumpridas, espontaneamente, pelo indivíduo, ou são cumpridas, forçosamente, através do mecanismo compensatório da chamada Lei de Causa e Efeito. Elas são normas deontológicas do agir humano, mas também são propriedades ontológicas da realidade espiritual. 



c) No Livro Quarto, “Esperanças e Consolações”, tem-se a Escatologia Espírita, isto é, a doutrina espírita do Fim: fim de uma encarnação, fim do ciclo de encarnações, fim (ou não-fim) do mundo, da civilização, da vida material. Ali também se trata das consequências do fim (punições ou consolações). Também aí a ontologia está presente: na interpretação espírita do conceito de fim, na apreciação de temas propostos pelo cristianismo antigo, como inferno, purgatório e paraíso, no estudo das profecias, etc.


Pelas razões apresentadas, vê-se a importância fundamental do estudo sistemático do LE como base para a elaboração de uma consistente visão filosófica espírita a respeito de questões fundamentais da tradição e do presente. E vê-se, também, o acerto, o enorme acerto de Kardec, ao circunscrever-se ao texto mesmo da revelação espiritual, deixando aos pósteros a tarefa de estabelecer relações, sempre provisórias, sempre perfectíveis, entre doutrinas separadas entre si pelo tempo exterior das estrelas ou pelo tempo interior do conceito.

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