Meditação (Heidegger) 3. O encontro entre a investigação ontológica e o pensar meditativo



A diferenciação entre a meditação ontológica e outros modos de pensar o ser, ontológicos (ontologia negativa, metafísica, senso comum) ou não ontológicos (ramos da filosofia e ciências particulares) libera o caminho para um encontro genuíno com aquele pensar em sua essência originária  (Ver); mas ainda não garante que um tal encontrar aconteça.




Aliás, as indicações negativas ou formais (Ver) constituem espécies de conditio sine qua non, sem as quais o encontro ontológico, enquanto recpiproca apresentação, é obstruído e substituído por um mero intercâmbio de representações, como dois indivíduos que, sentados frente a frente, ligassem os seus tablets para poderem entabular uma (pseudo)conversa.




A caracterização distintiva, portanto, visa realmente desligar todos os aparelhos e acréscimos supérfluos que pretendam canalizar a apreensão deste pensar meditativo numa forma que, embora não seja falsa ou irreal, é, contudo, derivada.




Entretanto, diferir e relacionar ainda não perfazem o dizer da coisa mesma. Eles não são, portanto, condições per quam, pelas quais o objeto tematizado – neste caso, o pensar meditativo – é desvendado para uma apreensão direta.




Por isto, há que se acrescentar outros elementos que, ao lado do importante papel preparatório da caracterização indicativa, possam ensejar efetivamente o tal encontro que a mesma tornou possível. Ou seja, mais do que desligar os tablets da pré-compreensão representativa e da compreensão ôntica, é preciso que as partes deste encontro (o investigador e a coisa investigada) estejam reunidos num mesmo lugar.




Porém, somente um dentre eles possui realmente o modo do ser-aí (Dasein), ou seja, do ente que pode realmente participar de um encontro (autêntico ou não); o outro é um modus cogitandi (modo de pensar), que pode apenas participar passivamente deste encontro, sendo encontrado (ou não) por aquele que o procura.




Um tal esclarecimento pode até parecer desnecessário como mero academicismo; mas coloque-se, p.ex., em lugar de uma ontologia referenciada a partir do ser-aí, uma metafísica do espírito enquanto ente fundamental-e-referencial, e eis que a coisa procurada também será passível de vir ao encontro.




Para compreender este exemplo, recorramos a Hegel. Ele diz, de maneira grandiloquente, que o pensar que conhece o ente chamado Absoluto não é um instrumento (um tablet, diremos no nosso exemplo metafórico) que traz o Absoluto à nossa presença sem que, neste, nada se altere, uma vez que ele, o Absoluto, "zombaria desta astúcia, que o trata como se não quisesse ou não pudesse estar em nosso conhecimento tal como ele é em si mesmo".




Em suma: neste caso, tanto o espírito pensante quanto a realidade espiritual pensável são passíveis de vir ao encontro.




Mas o ser não é o ente Absoluto – mesmo que um tal ente exista. Ele não encontra nem é encontrado. Heidegger, aliás, em muitas ocasiões, como em Tempo e Ser, chega a ilustrar a relação do ser com o pensar ontológico, dizendo que o Ser "dá-se", para assinalar esta diferença.




Porém, note-se que este "dar a si mesmo" não é nem um doar ativo, nem um ser doado passivamente: é uma expressão paradoxal que sinaliza exatamente tanto a impossibilidade de um discurso que simplesmente "doe" o ser, quanto um mero receber passivo do mesmo.




Há, pois, uma certa ambivalência ineliminável em toda fixação de sentido, em toda dicção do ser, ontológica ou não, originária ou derivada, ainda que esta se minimalize ou se obscureça nos setores do pensar e agir maximamente convencionalizados (p.ex.:"dinheiro é uma coisa que apenas se recebe ou dá, e nada mais").




Do mesmo modo, o pensar medidativo do ser matiza-se com esta ambivalência do ser. A rigor, quando se fala ser na ontologia heideggeriana, se está a falar justamente da compreensão ontológica que ilumina o pensar. O ser 'se dá' justamente quando um pensar meditativo autêntico está acontecendo.




Isto, contudo, não quer dizer que haja 'ocasiões' nas quais o ser não se dê, como se tudo padecesse à deriva nos intervalos entre eventuais aparições salvíficas de um herói chamado ser. Em razão precisamente da tal da ambivalência ineliminável, eis que, mesmo quando o ser se vela, ele está 'se dando' à compreensão (mesmo o super-herói invisível, que nunca sai do velamento visual, dá-se como presença não-imagética).




Nunca haverá, portanto, um pensar totalmente desprovido de vetor ontológico. Todo pensamento possui, em seu interior, o vestígio da auto-doação do ser, da compreensão ontológica que o instaura. Desvelá-lo não significa fazer jorrar uma luz extraterrena sob o fundo abscôndito de uma gruta, mas perceber que aquele 'escuro' era relativo aos olhos acostumados com o grau de claridade ontológica da planície em sua mediania.




Este alento, no entanto, é também desalento: o ser nunca se dará num total desvelamento. Há algo de velamento mesmo na iluminação mais cintilante – aliás, enfrentar a luz de um desvelar de frente implica o total ofuscamento, quando não a cegueira para aquele âmbito de desvelamento.




Ademais, para utilizar outra imagem, há sempre o que escapa ao espectro visível daquele pensar ao qual uma certa face do ser se ilumina – sim, na ontologia também há o infra-vermelho e o ultravioleta... O pensar ontológico deve incorporar profundamente a humildade de saber impossível a realização plena da meta eterna que a si mesmo propõe. E não há jeito: toda vez que ele se julgar em posse de um total desvelamento, eis que, neste momento, o ser que se dá estará, sorrateiramente, sendo velado na forma (gestalt) de um ente fundamental.




É justamente a partir desta humildade primordial que o ser-aí, este ente referencial que possui o privilégio de poder questionar ontologicamente o ente em seu ser, poderá passar da investigação ontológica (que passeia pelos diversos modos de pensar o ser, inclusive os não-ontológicos) para a meditação propriamente dita. E esta passagem se dá tanto mais plenamente quanto mais a ontologia negativa ali se insinuar com mais robustez e apuro. É escavando a terra grossa da tradição estratificada que o ser-aí que investiga poderá atingir o veio dágua da ontologia genuína, da qual jorra ser.

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