Livro dos Espíritos. Introdução. 3. As diferentes acepções do termo 'alma' no Livro dos Espíritos

O conceito de alma, crucial no cerne do discurso filosófico da doutrina espírita, era e ainda é objeto de dubiedade e mesmo controvérsia. Na tentativa de chegar a uma convenção o mais clara possível a respeito dele, Allan Kardec lança mão, no item II da sua Introdução ao LE, de uma metodologia bastante razoável: inventariar as diferentes acepções já conferidas ao termo, e verificar os termos adequados para designá-las, para então estabelecer uma significação menos suscetível de equívocos.



A primeira acepção encontrada por Kardec é a de princípio vital, ou princípio da vida material orgânica (principe de la vie matérielle organique). Trata-se de uma concepção materialista, isto é, que preceitua a vida como propriedade especial da matéria. Veja-se, porém, que não se trata de qualquer matéria: nem da matéria "simples", nem de toda e qualquer matéria viva, mas da matéria viva organizada.



A teoria do princípio vital como agente capaz de insulflar vida à matéria "inerte" gozava de prestígio ao tempo da elaboração do Livro dos Espíritos. Lembre-se que somente em 1862 Louis Pasteur viria a desferir o primeiro golpe mortal na chamada teoria da abiogênese, que preceituava, justamente, que a vida microbiana poderia advir não somente da reprodução (progênese, de onde vem o termo "progenitor"), mas também de uma eventual gênese espontânea, ou seja, a partir da matéria não-viva. E uma das versões mais aceites desta teoria até então era a que postulava a existência de um princípio vital, disperso na atmosfera, capaz de vivificar episodicamente a matéria, sob condições especiais (até então não estabelecidas claramente por ninguém).



Note-se, aliás, que Pasteur não derrubou definitivamente a teoria da abiogênese. Ela ainda continua a ser utilizada para explicar o surgimento da vida na Terra há 4,4 bilhões de anos. Acreditam os cientistas que, em um determinado momento, um complexo de reações químico-físicas altamente específicas e circulares, envolvendo cadeias carbônicas complexas, adquiriu a capacidade de se replicar em série. A diferença, porém, é que não há a proposição de um qualquer princípio vital a conduzir o processo, mas tão-somente as leis gerais da matéria sob condições iniciais especiais. Ou seja, trata-se de uma concepção reducionista da vida às leis 'comuns' da física.



Kardec nota, com acerto, que a alma, assim compreendida, seria um efeito e não uma causa: um estado ou propriedade precário e instável, adquirido pela matéria, e posteriormente perdido por ela em um processo de desagregação orgânica conhecido como morte. Isto significa que não há possibilidade de se falar em sobrevivência deste elemento vital após à morte, o que torna, a princípio, imprestável o uso desta acepção terminológica no bojo da doutrina espírita, a qual parte de postulados fundamentais absolutamente opostos em relação a esta acepção.



A segunda concepção de alma então verificável é aquela que a identifica ao princípio da inteligência, mais exatamente: uma porção absorvida de um princípio universal de inteligência, ou Inteligência Universal. Kardec pontua, uma vez mais com precisão que, nesta concepção, a rigor, só existe uma única alma, que distribuiria suas "centelhas" para todos os entes individuais. Há duas diferenças entre esta concepção e a primeira:



a) há uma outra coisa, além do elemento material;



b) esta outra coisa sobrexiste à morte.



No entanto, há duas semelhanças fatais entre ambas as doutrinas:



a) a dissolução da individualidade com a morte. Afinal, enquanto particularizações momentâneas da Inteligência Universal, as almas dos seres individuais retornariam à fonte universal após a morte. Ademais, o uso do termo alma para as 'porções individuais' da Inteligência corresponderia a um uso impróprio ou derivado.



b) a alma enquanto efeito, e não causa. Ela seria uma particularização derivada e suscitada pelo processo biológico da fecundação, posterior a este e dele dependente.



Resta, por fim, a terceira acepção encontrada por Kardec: alma como "um ser moral, distinto, independente da matéria, e que, após a morte, conserva a sua individualidade". Obviamente, falta esclarecer o sentido dos elementos contidos nesta definição:



a) O que significa um ser moral (Être moral)? Um ser capaz de costumes? De ação consciente e responsável? Dotado de inteligência e vontade? De livre-arbítrio? Mas, o homem, se livre for, o é desde sempre? E a alma enquanto tal, é sempre caracterizável pelo atributo da moralidade? E a infância? E os estágios primitivos da evolução humana? E a loucura? E as fases pré-hominais?



Lembre-se, ainda, que os franceses do século XIX designaram com a expressão personne moral (pessoa moral) aquilo que nós, lusófonos, denominamos pessoa jurídica, de modo que o qualificativo moral se via (e ainda se vê) marcado por aguda polissemia, de modo a requerer uma meditação específica para que se lhe detecte o sentido então visado no LE.



b) O que se entende por um ser distinto? Distinto da Inteligência Universal suprema? Distinto da matéria? Individualíssimo, único? Novamente, a idéia de distinção deve ser articulada com as idéias próximas de separação, autonomia e diferença.



c) Como compreender a idéia da independência da matéria? Como liberdade de ação em face dela, ou para além dela? Como desnecessidade da mesma? Como possibilidade de existência à parte?



Cada um destes conjuntos de questões pode receber respostas diversas conforme se adote ou não os postulados espíritas – e mesmo entre aqueles que o compartilhem. No entanto, Kardec já aponta uma diferença crucial entre a terceira resposta e as duas anteriores: nesta, a alma é considerada, para ele, como causa e não como efeito. Falta, porém, determinar-se em que sentido ela é causa, e de que especificamente ela o é.



É para dar conta desta dificuldade que Kardec procura esclarecer a acepção a ser utilizada no LE: alma é o ser imaterial e individual que reside em nós e que sobrevive ao corpo. E recorda que, mesmo que um tal ente não existisse, a designação de um vocábulo específico já seria de imensa valia para poder discorrer adequadamente sobre o mesmo.



Quanto às duas primeiras acepções, ele reservou as expressões princípio material e princípio inteligente. Ele discorre brevemente sobre ambas, o que será visto mais adiante, no estudo a respeito de algumas concepções de alma e espírito na história do espiritualismo.


Resumindo o panorama, então, tem-se: a palavra alma possui três acepções: princípio vital, princípio inteligente, individualidade moral sobrexistível, sendo que o LE decide por esta última. Com esta ressalva, Kardec admite, inclusive, em tese, o uso genérico do vocábulo alma com os qualificativos: vital, intelectual, moral. Com esta variação, inclusive, ele se filiará a uma longa tradição espiritualista, embora marcando, com clareza, a posição do Espiritismo neste debate. Cenas dos próximos capítulos. 

3 comentários:

Felipe disse...

Thiago, gostei muito da abordagem filosófica de seu texto e seus questionamentos. Parabéns!

No livro "O que é o Espiritismo" ele traz outra possível terminologia que parece abandonar:

"A união da alma, do perispírito e do corpo material constitui o homem; a alma e o perispírito separados do corpo constituem o ser chamado Espírito.

OBSERVAÇÃO — A alma é assim um ser simples; o Espírito um ser duplo e o homem um ser triplo. Seria mais exato reservar a palavra alma para designar o princípio inteligente, e o termo Espírito para o ser semimaterial formado desse princípio e do corpo fluídico; mas, como não se pode conceber o princípio inteligente isolado da matéria, nem o perispírito sem ser animado pelo princípio inteligente, as palavras alma e Espírito são, no uso, indiferentemente empregadas uma pela outra; é a figura que consiste em tomar aparte pelo todo, do mesmo modo por que se diz que uma cidade é povoada de tantas almas, uma vila composta de tantas famílias; filosoficamente, porém, é essencial fazer-se a diferença."

Neste trecho, Kardec diz que a alma é o princípio inteligente que é envolvido pelo perispírito, que lhe constituí um corpo espiritual. A alma e o perispírito, constituem o espírito. Eu entendo que nesse contexto, a alma é imaterial, mas o perispírito é material(apesar de Kardec utilizar o termo semimaterial, levando em consideração a época, é para que se torne inteligível que algo que não se pode ver nem sentir, a priori, não seja imaterial). Note que ele reutilizou o termo "princípio inteligente".

Acho que o espiritismo precisa de novos termos, já que nem o Espiritualismo nem o Materialismo estão 100% corretos: tanto o mundo físico como espiritual, são materiais, o que muda é o estado da matéria, ou melhor, o que muda é o estado da energia. No entanto, o princípio inteligente do espírito, é realmente imaterial, assim como Deus o é, e talvez o polêmico fluido cósmico universal, a Arché do Espiritismo clássico.

Obs: Espiritismo clássico é um termo estruturalista sistemático dos historiadores da filosofia da UEFS -> Rafael Azevedo - vos denuncio! rsrsrs

Abraços,

Felipe

Thiago El-Chami disse...

Muito bom o comentário, Felipe. É perceptível a oscilação terminológica, o que não compromete a compreensão das matérias, uma vez que Kardec sempre se utiliza do expediente de clarificar os termos nucleares do discurso com qualificativos que os especifiquem. Aliás, a própria oscilação é justificável, como tentarei mostrar no estudo sobre a História do conceito de alma no espiritualismo em geral.

Felipe disse...

Realmente Thiago,não vejo problema nesta oscilação, até por que o Kardec deixa claro o significado dos termos que reutilizou. Só gostaria de destacar que a terminologia que ele cita acima, ele acaba descartando. O termo "alma" é o mesmo que "espírito", e prossegue assim, mas eu prefiro quando ele separa uma coisa da outra. Ele justifica dizendo que alma e espírito se confundem mesmo, mas atualmente essa diferença sutil traz problemas, não só teóricos, como práticos.

O princípio inteligente tem um corpo espiritual, e pode ter um corpo físico. No entanto, sabemos que essa divisão pode ser bem diferente. Podemos separar a fonte intelectiva, mas de onde vem a fonte de vida? é o mesmo princípio? ou há um princípio vital ainda? Isso é apenas um detalhe na dificuldade de conceituar o espírito e suas partes, e isso se estende à experiência prática.

Aproveitando este assunto, gostaria de te fazer conversar com vc sobre um projeto em que pretendo resolver parcialmente alguns problemas, através da experiência. Gostaria de compartilhar umas ideias contigo, blza?

Um abraço,

Felipe