A questão do Amor à Luz do Tractatus Logico-Philosophicus de Wittgenstein


Introdução

A questão do amor desafia os séculos como demanda permanente da reflexão e da experiência humanas. Por isto mesmo, em boa parte das grandes visões de mundo filosóficas já empreendidas, tal indagação constitui objeto privilegiado de análise.
Embora o Tractatus Logico-Philosophicus de Wittgenstein não consista essencialmente numa cosmovisão, eis que o amor, enquanto problema metafísico, secciona transversalmente o plano sobre o qual se desdobra a argumentação desta obra, que é o plano lógico.
E, dentre as diversas perspectivas pelas quais o amor pode ser apreciado filosoficamente, uma em particular interessa ao horizonte do Tractatus: a problematicidade do amor está em que, na maior parte das vezes em que é pensado, sua formulação ou meditação desafia os limites da linguagem.
Assim, observa-se com frequência que a reflexão sobre o amor, pela condição acima indicada, abeira também as fronteiras do próprio pensamento: ora se aproximando vertiginosamente de tais limites, ora se chocando frontalmente com os mesmos, a exprimir-se em uma multitude de paradoxos; ora, enfim, parece ultrapassá-los completamente, apresentando-se na forma de símbolos quase que impossíveis de pensar.
Diante de tal panorama, o presente estudo procura refletir: seria o amor um objeto possível de pensamento, segundo a perspectiva do Tractatus? Pertenceria ele ao conjunto das coisas sobre as quais é possível falar? De que maneira? E, se não for possível falar do amor, ao menos será possível mostrá-lo, ''apontando'' de alguma maneira para sua realidade ou possibilidade? Ou será que ele pertence ao conjunto das coisas que não são nem dizíveis nem mostráveis?
No entanto, não se trata aqui de esboçar respostas possíveis a esta questão, meta que ultrapassa os estreitos limites deste artigo. Importa aqui, antes do mais, colaborar para a correta colocação do problema, para uma cada vez melhor formulação da pergunta. O objetivo, em verdade, é aprofundá-la, tornando-a cada vez mais explícita e precisa no horizonte do Tractatus.
O intento, em suma, não é pensar o amor, mas a questão do amor, a possibilidade do amor enquanto questão filosófica fiável.
Para isto, escolheu-se aqui o seguinte caminho: evidenciar alguns impasses ou aporias suscitados pela questão do amor quando observada a partir desta obra, tentando já decidir se tais impasses impossibilitam pensar o amor filosoficamene, ou se, ao invés, justificam e legitimam filosofá-lo, enfim.

1. Os limites da linguagem: o amor é o caso?

Os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo (p.5.6.) 1. E, se o mundo é tudo que é o caso (p.1.), importa perguntar: será que o amor é verdadeiramente o caso?
O caso, o fato, é a existência de estados de coisas (p.2.) - e não as próprias coisas.
Estes estados de coisas são os fatos, o ''estofo'' básico da realidade, cabível na expressão da linguagem, homólogo a ela, e com ela aparentado por um nexo estrutural mais adiante esclarecido por Wittgenstein como forma lógica.
Será, pois, que o amor é um fato entre fatos? Esta é a condição para que ele pertença ao mundo, pois o mundo resolve-se em fatos (p.1.2.). Para que isto se verifique, ou ele próprio constitui o estado de coisas que, sempre e em toda parte, constitui uma ligação de objetos/coisas (p.2.01.), ou ele é uma destas coisas que aparece no interior desta relação articulada chamada estado de coisas.

2. O Mundo do Tractatus como Mundo Lógico: o amor é logicamente possível?

De saída, uma observação pode ser apresentada em favor da questão do amor na perspectiva desta obra. Os fatos que constituem o mundo são os fatos do espaço lógico (p.1.13.), o que significa dizer que mundo2 é compreendido. no horizonte do Tractatus, como ''mundo lógico'', isto é, como totalidade das possibilidades de estado de coisas - e não como a totalidade das coisas concretamente existentes.
Assim, mesmo que em nenhum estado de coisas atual e descritível no contexto da experiência direta apresente o objeto amor, a possibilidade de pensar este objeto, no interior de um estado de coisas exprimível através da linguagem e compatível com a totalidade das demais coisas lógica e linguisticamente possíveis, já garante a condição de legitimidade do amor enquanto uma possível questão para o pensamento.
Isto, no entanto, não está garantido logo de saída no Tractatus, pois pode ser que análise das demais condições de possibilidade da linguagem faça emergir algum aspecto incompatível com o que se tem pensado a respeito do amor. É preciso, portanto, avançar mais na reflexão do tratado.

3. A compreensão metafísica tradicional do amor: absoluto inexprimível?

O amor é costumeiramente apreciado em perspectiva metafísica como algo pertencente ao domínio do absoluto, ou seja, como uma realidade de tipo especial em face das coisas que constituem a experiência ordinária3.
Se assim for, verdadeiramente encontramos, já na segunda proposição do Tractatus, uma contrariedade lógica à possibilidade de pensar o amor. Afinal, se o caso é existência de estado de coisas (p.2.), e o estado de coisas é uma ligação de objetos (p.2.01), é preciso atentar para o fato de que é essencial para coisa poder ser parte constituinte de um estado de coisas (p.2.011).
Isto, porém, não autoriza que se possa pensá-lo isoladamente, sem a vinculação aos demais elementos de algum contexto situacional capaz de ser precisado numa descrição linguística.
Amor, portanto, se puder ser pensado, terá que sê-lo no interior de uma relatividade, o que significa: no interior de um sistema de relações com os demais elementos de um estado de coisas apresentável na expressão linguística. Mas, isto seria compatível com a visão metafísica do amor enquanto um absoluto? Será que apontaria precisamente para a impugnação de toda e qualquer concepção metafísica a seu respeito? Ou será que abriria campo para a possibilidade de uma metafísica não-absolutista do amor?

4. Aporias do conhecimento do amor: totalidade, propriedades internas, previsão.

O avançar da reflexão acerca da proposição 2 do Tratado acrescenta três outros problemas, verdadeiras aporias, para a possibilidade de pensar o amor filosoficamente.
O primeiro é a circunstância de que, se conheço um objeto, conheço também todas as possibilidades de seu aparecimento num estado de coisas (p.2.0123). E, até o momento, nenhuma reflexão consistente sobre o amor, na História do Pensamento, deu conta sequer de propor uma análise minimamente suficiente sobre o mesmo, que representasse patrimônio definitivo da reflexão humana, ou se tornasse invariante conceptual universalmente partilhada, de modo a esgotar-lhe todas as facetas.
Além disso, para conhecer um objeto, devo conhecer todas as suas propriedades internas (p.2.01231), condição também não satisfeita pela grande maioria das reflexões sobre o amor, na medida em que acolhem e evidenciam o caráter de mistério ou de transcendência presente na realidade do amor.
E, finalmente, tem-se que, uma vez conhecido o objeto, conheço todas as possibilidades de seu aparecimento em estado de coisas (p.2.0124), previsão e predeterminação possivelmente incompatíveis com o caráter de espontaneidade e imprevisibilidade comumente associados ao amor.
E então? É possível afirmar conhecer-se um objeto ao qual se atribui um certo aspecto de mistério? Ou ainda, pode-se ter algo por realmente conhecido quando se renuncia preliminarmente à sua definição ou, ao menos, conceituação?
Quanto ao segundo problema: é possível algum conhecimento mais sumário, caracterizado pela posse de notas mínimas distintivas do objeto em questão, sem pretender-lhe exaurir as propriedades internas? Será que o Tractatus, por alguma via, endossaria este caminho?
E, em suma, posso considerar conhecido um objeto imprevisível? Será que o Tractatus permite interpretar, em nível lógico, esta predeterminação como uma previsão lógica da propriedade interna da imprevisibilidade? Ou se deveria entender a imprevisão como o não conhecimento de propriedades internas decisivas, como um não prever por ignorar?

5 – Amor e figuração

Uma outra questão importante, que emerge a partir da proposição 2.1. é a de saber se é possível figurar o amor, pergunta associada visceralemente à indagação de se ele constitui um fato entre fatos, um lugar específico no espaço lógico determinado por uma proposição (p.3.4.).
Para dar conta deste problema, é preciso primeiro resolver como entender logicamente a multiplicidade e ambiguidade figurativas do amor, no plano da ontologia per se: pois o amor é múltiplo, na medida em que se exibe (ou, pelo menos, crê-se vê-lo exibido) numa diversidade de formas concretas, muita vez até antagônicas entre si. E ele é também ambíguo, no sentido de que, não raro, está presente de modo inaparente onde parece faltar, e efetivamente ausente onde aparenta apresentar-se.
Diante disto, é preciso indagar: será compatível com a figuração lógica dos fatos uma faticidade ambígua como a do amor? Será que se pode, pois, considerá-lo realmente fático? Se fático, será figurável? Uma vez figurável, seria esta figuração compatível com a figuração lógica dos fatos, que é o pensamento (p.3.), para que se possa dizê-lo, então, pensável? Afinal, se o amor escapar completamente à lógica, ele não poderá ser pensado, pois não se pode pensar nada ilógico (3.03).

6 – Amor e Pensamento

Ao compreender-se o pensamento como figuração lógica dos fatos (p.3.), aparece como tarefa estabelecer se o amor é passível de ser pensado. Afinal, mesmo que ele não exista neste mundo físico concreto, basta que ele ocupe um lugar determinado no espaço lógico para que seja considerado um fato, na percpectiva do Tractatus.
Assim, existem três possibilidades de fixar a relação entre amor e pensamento a partir do Tractatus:
a) ou o amor não é possível de ser figurado logicamente e, pois, não consitui um objeto de pensamento, uma coisa pensável;
b) ou ele é pensável porque compatível com a totalidade dos fatos que perfazem o espaço lógico, ou seja, o mundo do Tractatus, mas não encontra correspondência no mundo físico concreto; pensável, mas falso.
c) ou ele é pensável e correspondente ao que é o caso em algum lugar específico do mundo concreto, sendo pensável e verdadeiro.
Para dar conta das opções b e c, no entanto, é preciso apreciar a relação entre Amor e Proposição, assunto do próximo item.

7 – Amor e Proposição

O pensamento é a proposição com sentido (p.4.), elemento de um conjunto cuja totalidade é a Linguagem (p.4.001.), que consiste numa figuração da realidade (p.4.01), na medida em que representa a existência ou inexistência de estados de coisas (p.4.1).
Se Amor é algo logicamente possível, ou seja, pensável, isto faz com que ele seja exprimível numa proposição capaz de dizer se ele corresponde ou não a um estado de coisas existente, isto é, se ele é ou não é o caso.
Para isto, contudo, o amor precisa ser dito ou através de uma proposição elementar, ou através de uma proposição complexa constituída por proposições elemetares. Pois, somente no interior de uma proposição é que o nome amor pode ter significado (p.3.3).
Contudo, se o amor for pensado como um absoluto, isto implicaria considerá-lo justamente como um nome com significado em si, independentemente de sua aparição no interior de uma proposição. Em consequência, tem-se que: ou o amor não é um absoluto, ou não é proposicional (e, consequentemente, não pensável).

8 – Considerações finais

O enquandramento lógico da questão do amor sempre suscitou controvérsias, comuns a todas as questões decisivas da experiência humana.A técnica lógica, em suas mais variadas expressões, constitui uma grande máquina intelectual de exploração de informações, de obtenção de conclusões, de derivação de proposições, de descida aos fins.
Todavia, ela nada pode dizer acerca dos princípios, das premissas, dos postulados, dos pontos de partida de cada ramo do saber, de cada sistema filosófico, de cada visão de mundo, nem mesmo da mais simples e despretensiosa reflexão: ela precisa receber este input para que possa então atuar.
O Tractacus de Wittgenstein constitui um caso especial nesta interface. Nem representa meramente mais um sistema lógico, mais um ''software intelectual'' de cálculo de proposições ou de predicados; e nem pretende ser um sistema metafísico, um discurso ontológico, uma rede de premissas explicativas do mundo ou da vida. Ele pretende situar-se num lugar de fronteira, apontando elementos essenciais para as máquinas lógicas que pretendam explicar o mundo e o exprimir através da Linguagem, mas também impondo condições mínimas a todo pensamento que pretenda incidir sua luz sobre o prisma lógico da linguagem, de modo a decompor o rico e multicolorido panorama da realidade concreta.
Para isto, evidentemente, ele está permeado de pressuposições metafísicas, algumas fortes (como a da homologia entre Pensamento, Linguagem e Mundo). Isto, portanto, nos requer que pensemos não se o Tractatus é compatível com o discurso metafísico (ou, ao menos, com o ontológico), mas com que tipo de discursos ele se compatibiliza.
Isto repercutirá, necessariamente, sobre o estatuto da reflexão sobre o amor, quando apreciada à luz desta obra. A depender da tessitura metafísica ou ontológica que se dê à trama da argumentação, ela tenderá ou não a se chocar contra os limites da linguagem. Esta foi uma das conclusões deste estudo, cuja tentativa de exploração das questões e impasses relativos aos temas fundamentais do Tractacus sugere uma multiplicidade de modos alternativos de tratamento do tema.
Em todo caso, é até possível que o exercício de uma reflexão sobre o amor nos moldes conceptuais propostos pelo Tractatus retroaja positivamente sobre a própria interpretação que se possa dar à obra no sentido do desvendamento daqueles pressupostos metafísicos acima aludidos, cujo inventário ainda se está por fazer. E, talvez aí, seja realmente o caso de lançar mão de recursos linguísticos que intencionalmente se aproximem das bordas lógicas do dizível e do mostrável, para realçar os contornos destas estruturas e fazer pensar sobre elas.
Com este fim, e a título de singela provocação, este estudo se encerra apelando ao dizer poético como modo de trazer tais limites para o centro da reflexão:




                                                                                            Zeigen

O amor não é uma coisa deste mundo,
e nem poderia sê-lo: o mundo é feito
por casos, não por coisas, e é refeito
ao mais leve oscilar de estado ao fundo.

O amor, se é que há amor, é, em si, perfeito.
Entretanto, o absoluto, o ser profundo,
não é fato entre fatos: sempre inundo
em sangue, amor não guarda o humano peito.

Mundo, casos, estados... que ironia!
Ao dizê-los, há um rastro de harmonia
que não pode ser dito - apenas visto,

e, pois, mostrado silenciosamente -
entre a linguagem e o mundo à sua frente:
e eis que amar é mostrar - inclusive, isto.

(Thiago El-Chami)

1Para evitar o procedimento exaustivo de citações diretas e indiretas neste texto, que dialogará unicamente com o Tractacus, e a partir de uma única tradução para o portugugês, se indicará a proposição específica conforme o seguinte modelo: (p.1), (p.2.1), (p.5.6), e assim sucessivamente. A edição brasileira de referência é a seguinte: WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-Philosophicus. Tradução, apresentação e estudo introdutório de Luiz Henrique Lopes dos Santos. [Introdução de Bertrand Russel]. - 3a ed. 2ª reimpr. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2010. E se optará, essencialmente, por paráfrases, com imediata indicação da proposição respectiva.
2 O itálico e as aspas serão intercambiáveis ao longo do texto, atendendo à clareza de exposição e facilidade de leitura, opção aqui eleita em razão do grande número de destaques e realces exigidos pelo argumento e pela matéria.
3 Não é relevante aqui inventariar exemplos de tal perspectiva metafísica, dado que já se postulou o seu denominador comum: o caráter especial (absoluto) da realidade do amor. E a finalidade é verificar a compatibilidade de tal denominador comum com as condições exigidas pelo Tractatus.

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