A
tentativa de captar ou desvendar as ideias de Tales de Mileto a
respeito de qualquer tema é empreitada difícil e quase
impraticável. A sua distância no tempo, até mesmo daqueles que
primeiro registraram e transmitiram a nós o seu pensamento, faz com
que tudo o que se diga sobre ele recaia no domínio da quase pura
conjectura.
No
entanto, é possível efetuar uma interpretação “arqueológica”,
isto é, uma análise destinada a tentar reconstruir, com base em
fragmentos, uma totalidade anterior que não mais se possui. Para
isto, a teorização deverá contribuir, formulando hipóteses com
base em outros elementos que possam lançar luz sobre o
quebra-cabeças.
Tales é
conhecido como o primeiro pensador do “elemento universal”, e por
ter identificado este elemento como sendo a Água. A tendência mais
natural para investigar a sua concepção de alma, portanto, seria
partir deste dado universalmente admitido, e articular propostas a
serem examinadas.
Há,
porém, uma via mais segura. Aristóteles, que menciona Tales em
alguns de seus tratados, o faz também num tratado dedicado
justamente ao estudo da psychè: o tratado hoje conhecido por
sua tradução latina, De Anima. Ouçamos Aristóteles:
“Afirmam
alguns que ela (a alma) está misturada com o todo. É por isso que,
talvez, também Tales pensou que todas as coisas estão cheias de
deuses. Parece também que Tales, pelo que se conta, supôs que a
alma é algo que se move, se é que disse que a pedra (imã) tem alma
porque move o ferro” (De Anima, 5, 411 a7).
Nesta
passagem, uma série de elementos interessantes se apresentam. Temos
uma opinião de um homem do sétimo século antes de Cristo,
analisada por outro do século quarto A.C. Podemos, então, entender
um pouco sobre a evolução desta noção ao longo destes trezentos
anos. Destaquemos, então, as teses principais:
a) A
distinção entre a alma (ou o elemento anímico) e o elemento
material;
b) A
presença universal do elemento anímico
c) A
alma enquanto princípio do movimento
Com
relação ao primeiro item, ressalte-se que não se tem aí, ainda, a
distinção entre alma e matéria. Embora a palavra
para esta última (hyle) já existisse, ele só viria a
adentrar o vocabulário filosófico mais de duzentos anos depois, com
Demócrito e Leucipo. Em termos aproximados, podemos dizer que a
contraposição se fazia entre as ideias de alma e de corpo, ou de
alma e coisa.
Além
disso, observe-se que a distinção não implica separação: a alma
é apreendida em conjunto com as coisas ou corpos, ela se apresenta
neles, como algo que neles se manifesta e neles interfere. Ela está,
portanto, “misturada”. No jargão atual, podemos dizer que se
trata de uma concepção imanentista da alma, enquanto algo
que subjaz à realidade das coisas e dos seres, mas que participa
dela, em vez de constituir unicamente um outro nível de realidade.
O
segundo aspecto destacado é o mais importante. A partir do
cristianismo, a noção de alma no Ocidente se tornou muito próxima
à de indivíduo, de pessoa. Aliás, trata-se de uma
imbricação de elementos de três culturas diferentes, pois a
própria noção de pessoa tem sua origem na teoria
jurídico-política romana (nem todos tinha personalidade na
Civitas romana).
Porém,
a cosmovisão grega do período áureo aponta para um pampsiquismo,
isto é, para a ideia de um certo princípio anímico (uma alma entre
aspas) a permear todas as coisas existentes. Em suma, o elemento
anímico não assume o papel de princípio individualizador,
ou, pelo menos, não em todos os casos.
Por fim,
o último item indica uma concepção mais “fisiológica” da
alma: a alma é aquilo que está num corpo e o faz mover-se. Para
nós, hoje, parece tratar-se de uma concepção mecanicista ou
fisicalista, mas esta é uma impressão anacrônica. A ideia de alma,
entre os antigos, é muito próxima à ideia de movimento.
No
latim, isto fica ainda mais claro: a anima é aquilo que
difere um corpo “animado” de um “inanimado”, ou seja,
desprovido de movimento; e um animal é o ente vivo capaz de
mover-se por si mesmo.
Foi por
esta razão que Tales disse (ou teria dito) que o imã tem uma alma,
uma vez que tinha algo que provocava movimento no ferro do qual se
aproximava: tinha um princípio motor. Pelo mesmo motivo,
supôs que tudo o mais estava “cheio de deuses”, ou seja, de
elementos anímicos capazes de suscitar movimento.
Este
último elemento pode ser reconduzido ao segundo: a alma é princípio
do movimento porque é, também, o princípio vital. Neste
sentido, todos os seres vivos possuiriam alma, mesmo aqueles
incapazes de movimento aparente ou de deslocamento espacial: as
plantas possuem alma na medida em que há algo que as faz crescer (e
o crescimento é uma forma de movimento, para os gregos).
É
interessante notar que esta concepção de alma ainda não está
próxima da concepção da “alma enquanto espírito”, ou seja, da
visão que a coloca como um princípio inteligente e
individualizador. Trata-se de uma ideia muito mais próxima da noção
de vida.
Veja-se,
por fim, que a religiosidade grega já estava razoavelmente
desenvolvida a esta altura. A não-associação imediata da ideia de
alma à de espírito não mostra uma primitividade da mesma em
relação ao pensamento contemporâneo, mas uma compreensão mais
naturalista da mesma. Aos poucos, o conceito de espírito
também será chamado a dar conta de explicar alguns dos fenômenos
no plano da physis. Mas ainda há que se esperar quase um
século para isto.
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