A
Justiça, enquanto problema capital da Filosofia do Direito, requer o
máximo empenho desta no sentido de sua sempre problemática e
incompleta solução. Isto, no entanto, obriga o jusfilósofo a
recorrer às instâncias geratrizes do Direito e da Filosofia, para
que ele melhor se aproprie do que há de ser pensado nesta reflexão,
bem como do modo como se há de fazê-lo.
Por isto, Joaquim Carlos Salgado
inicia, acertadamente, a introdução ao seu estudo sobre a Idéia
de Justiça em Hegel enunciando algo sobre a natureza e a
finalidade do Direito e da Filosofia, antes de se propor a
analisar-lhe as relações e o modo como Hegel os pensa e as pensa.
A respeito do Direito, ele parte de
uma enunciação conforme o entendimento comum, partilhado por
indivíduos das mais díspares convicções filosóficas ou
jurídicas, e o faz citando Radbruch: “direito é a realidade que
tem o sentido de estar a serviço da idéia de justiça”. Esta
definição tem ainda a vantagem de ser perfeitamente coerente com os
princípios da filosofia hegeliana. Mais do que isto: ela prepara o
solo para a futura compreensão da justiça como Idéia.
No que diz respeito à filosofia,
ele já a apresenta em termos Hegelianos, como o pensar da realidade
por reflexão pelo pensar de si, do pensamento. Ou seja, a filosofia
é uma espécie de autocontemplação, auto-análise ou automeditação
do pensamento.
Dito isto, ele faz uma ressalva.
Esta autorreferência do pensamento filosófico não significa,
porém, um isolamento autista da filosofia, algo que facilmente seria
pensado com sarcasmo pelos seus detratores, que a vêem como uma especulação
cerebrina ou como uma investigação de gabinete. Ao contrário, este
retorno do pensamento a si, na filosofia, é um retornar a partir
do outro, do real: o pensamento filosófico é uma reflexão
reconduzida a si mesma a partir do conhecimento do mundo, em suas mais variadas
expressões: senso comum, tradição, arte, religião, ciência,
mito, etc.
Trata-se, portanto, de um saber
mediatizado pelo conhecimento das formas simbólicas da cultura.
Nesta, a natureza também é expressa e perde a sua opacidade. Isto
significa que a concretude, a materialidade e a imediateidade do real
se tornam inteligíveis a partir de símbolos que as iluminam e as
permeiam de sentido. Ou seja, a filosofia não é um abandono do
conhecimento diligente da realidade em prol de um descanso quietista
do pensamento, mas uma volta pra casa que traz consigo os tesouros
que conseguiu ajuntar na sua peregrinação pela experiência do
mundo.
Neste retorno, a filosofia faz com
que o pensamento caminhe em direção ao universal, elevando à ideia
as determinidades sensíveis e finitas da concretude exterior, dos
fenômenos da natureza ou da cultura. A tarefa da filosofia,
portanto, é pensar a universalidade do homem enquanto livre, na plenitude da criação espiritual,
inteligindo o homem em sua essencialidade, liberto das contingências
históricas, das particularidades culturais, das limitações
naturais, da finitude ontológica pura e simples.
Salgado recorda que, para dar conta
desta missão da filosofia, Hegel busca pensar o absoluto (dimensão
idealista do real) em sua face imanente (realista). Isto significa
que ele não aborda, inicialmente, o absoluto compreendido em sua
plenitude, na máxima expressão de suas virtualidades, na idealidade
apenas pensada, mas no seu poder-ser ainda não realizado, naquilo
que ele é em si, embora ainda não o seja para si. Ele
pensa, portanto, a liberdade na história: a liberdade em sua
aventura, desde o despontar dos primeiros atos genuinamente
históricos, passando pelas encruzilhadas civilizatórias, em seus
avanços e recuos, erros e acertos, seus vales e abismos, até aquilo que ele considerou o
ápice e a plena realização da Liberdade: o mundo novo prenunciado
(mas ainda não realizado) pela Revolução Francesa, cuja efetivação
competiria, a seu ver, ao seu século e à sua pátria.
Em todo caso, a liberdade é vista,
por Hegel, como o elemento da história, aquilo em que esta
surge e se move, da incipiência à excelência. E justamente por
isto a História seria o lugar do revelar-se do espírito, da razão
que se determina a si, uma vez que a Natureza, na concepção
Hegeliana, é “espírito ainda inconsciente de si”, ou seja, é
potencialidade criadora que não se sabe exercer na forma da
evolução, mas que só sabe repetir as suas figuras e
momentos, que são pré-determinados em vez de
auto-determinados. Lembre-se que Hegel não conheceu a obra
renovadora de Darwin, e não pôde meditá-la em sua essencialidade.
Se o tivesse podido, talvez concluísse pela historicidade
evolutiva da natureza, ainda que em forma relativamente limitada
em face da História do Espírito, isto é, da História
Humana e sua onímoda criatividade e mutabilidade.
Ora, é esta liberdade objetivada
na forma de instituições sociais normativas que há de constituir o
Direito. A Filosofia do Direito, portanto, será uma forma especial
do retorno reflexivo do pensamento a si, efetuado a partir da
meditação das objetividades sociais, das leis e das instituições. Não por acaso, será na sua
Filosofia do Direito que Hegel comparará a Filosofia à
coruja de Minerva, que só efetua o seu vôo no crepúsculo do dia findo, após a história ter transcorrido e as criações culturais terem se
materializado completamente. No entanto, será lá também que ele a
equiparará ao manto de Penélope, que todos os dias é desfeito e
recomeçado desde o Princípio. Voemos e costuremos, então, como a ave da deusa e como a mulher de Ulisses. Mas,
antes e concomitantemente, vivamos, ajamos, façamos. Criemos.
Pensemos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário