Anaximandro
é, dentre os primeiros filósofos, aquele que provavelmente mais nos
espantaria, caso sua obra fosse arqueologicamente redescoberta. Além
de ser considerado o primeiro a ter composto uma obra filosófica –
e talvez em verso –, o fato é que suas teses ainda nos soam
bastante arrojadas, e mesmo grandiloquentes, de modo que ficamos a
especular o quanto nosso horizonte e trajetória intelectuais teriam
sido diferentes se os ecos de seu pensamento nos chegassem mais
fortes do que os sugestivos sussurros que restaram.
A
princípio, seria o caso de se descartar o estudo de Anaximandro,
neste breve itinerário histórico do conceito filosófico de alma,
haja visto que não nos restou numa alusão direta do velho jônico
sobre o ponto. Porém, uma paciente inflexão sobre o seu legado nos
permite afirmar que esta inaparência superficial é indício de uma
presença mais profunda, visceral.
O
único registro considerado autêntico da voz de Anaximandro é
encontrado em Simplicio (Física, 24,
13). Diz este que ele considerava como princípio (archè)
de todas as coisas o Ilimitado (Apeiron),
pois “de onde a geração é para os seres, é para onde também a
corrupção se gera, segundo o necessário; pois concedem eles mesmos
justiça e deferência uns aos outros pela injustiça, segundo a
ordenação do tempo”.
Por
mais variadas que sejam as interpretações deste excerto, elas
costumam concordar em alguns pontos:
a)
Há um princípio ou elemento de onde as coisas surgem (na geração)
e no qual elas desaparecem ou se aniquilam (na corrupção);
b)
A geração e corrupção, além de se darem junto a este princípio,
são regidas por ele, segundo o necessário (katà
tò chreón). Este princípio,
além de fonte, é
também uma “lei”.
c)
Os diversos seres participam da aniquilação ou corrupção uns dos
outros (concedem-lhe justiça e deferência). Ou seja, aniquilar um
ente é fazer Justiça (Dike),
donde se infere que todo surgir de algo, todo escapar da fonte
primeira, é uma “injustiça” (adikia),
uma violência;
d)
O modo de cada ente fazer justiça ao outro é através da injustiça:
cada coisa ao surgir, aniquila violentamente uma outra que lhe
precedia, “vingando”, por sua vez, o que aquela fizera com uma
outra a qual aniquilou;
e)
Esta “expiação” universal de todas as coisas, não se dá
simultaneamente, ao mesmo tempo, mas segundo a ordem
do tempo (katà
tèn toû chrónou taxin).
Resta-nos
agora verificar em que medida a noção de alma
está implicada nesta ordem de ideias, se é que o está. E isto já
se torna claro no primeiro item: a menção à geração e corrupção,
ou seja, a nascimento e morte, aplicados a todas as coisas, mostra
que Anaximandro ainda participa do hilozoísmo
da cultura grega antiga, isto é, da concepção de que todas as
coisas possuem uma espécie de vida,
que as acompanha da sua gênese à sua aniquilação. E este elemento
vital, como já fora indicado noutros estudos, é também um elemento
anímico., uma alma,
embora não necessariamente uma alma inteligente
(um
espírito).
Anaximandro,
portanto, participa deste hilozoísmo fundamental, acrescentando a
ele sua tese de que há uma fonte
ou elemento
do qual todas as coisas surgem e desaparecem, da qual, ao que parece,
haurem a sua vitalidade e a qual retornam ao perdê-la por completo.
Nisto, aliás, ele ainda está muito próximo de seu mestre Tales,
que via a Água
como
esta fonte universal da vida e do ser.
A
segunda afirmação aponta para uma regra ou ordem no surgir e
desaparecer das coisas; não se trata, portanto, de um Chaos,
mas de um Kosmós.
Isto novamente reconduz Anaximandro à concepção de um princípio
ordenador de natureza anímica, comum a toda a civilização grega,
para a qual a realidade só é um Kosmós
porque
há algo que a mantenha unida, ligada em suas partes. Este é o
sentido de tò
chreón,
que alude a necessário,
mas nesta perspectiva de ligado,
coarctado, amarrado,
o que, aliás, recorda as ideias de Destino (Moira),
entidade transcendente que amarraria os nós das existências
temporais dos seres, e de Anake
(personificação
divina da Necessidade,
que
exerceria papel semelhante).
A
ideia de que cada ser surge para perecer, que está fadado ao
aniquilamento, por seu turno, aponta para uma concepção
trágica da existência.
Ela já está presente nas epopéias de Homero e nas Cosmogonias de
Hesíodo, mas vem a predominar na grande Tragédia
ática
(Ésquilo, Sófocles, Eurípedes). É mais uma noção ligada à de
Destino, a um sentido transcendente que rege e determina todas as
coisas: uma espécie de Julgamento
universal
oculto, e com ele, a de um princípio
julgador oculto.
Outro elemento anímico, portanto.
Para
ratificar a tese anterior, veja-se o tema da aniquilação
como expiação.
Morrer, perecer, deixar de ser são punições ao ente cuja
existência violenta, cujo surgir arbitrário da fonte primeira é
uma grande injustiça. Aqui, Anaximandro se vincula à tradição já
secular em seu tempo do Orfismo: da existência como sina, do caráter
negativo de todo agir ou ser, da morte como expiação e redenção,
com a ressalva de que, no Orfismo, isto se aplica à alma
humana
como tal, enquanto que Anaximandro vislumbra esta potência fatalista
do existir em todos os entes. E eis que ele não teria, portanto,
como efetuar esta transposição de ideias, esta generalização do
princípio órfico, caso não considerasse a presença universal do
elemento anímico.
Finalmente,
a menção da uma ordem
do tempo (chrónou
taxin)
o inscreva na concepção do tempo cíclico, circular, do eterno
retorno dos seres, uma versão em escala cósmica da metempsicose
ou retorno à existência (para alguns, entendida mais estritamente
como reencarnação).
O tempo só retorna porque há algo depois do fim, porque o princípio
se reitera, se repropõe, se manifesta outra vez.
Veja-se
que a interpretação aqui tentada não partiu dos dois leitmotiv
mais famosos da historiografia dedicada a Anaximandro: à tese da
Physis (Natureza)
como Arche
(Princípio), e a ideia de que este Princípío é o Apeiron
(Ilimitado,
Infinito, Indeterminado). Tais elementos, se trazidos à
investigação, robustecerão ainda mais o caráter anímico da visão
de mundo de Anaximandro. Matéria para um outro estudo.
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