Fenomenologia do Espírito - 1. Um prefácio para o "Prefácio"


A Fenomenologia do Espírito parece, à primeira vista, iniciar-se à maneira dos livros convencionais: com um prefácio a ponderar sobre sua própria desnecessidade. Isto pode soar, ao leitor desatento, como uma mera peça de retórica, ou como uma justificativa envergonhada do autor por recorrer a um (mui extenso, por sinal) Prefácio.


Trata-se, porém, de uma aparência. O modo de exposição da questão filosófica, comumente encontrando em prefácios e introduções de tratados de Filosofia, é exemplo característico de um dos modos do próprio filosofar – e a Fenomenologia é, antes de mais nada, uma "genealogia" e uma "anatomia" de tais modos e atitudes pensantes, em seu desabrochar sucessivo na história do "Espírito".



Portanto, acompanhar o movimento reflexivo com o qual Hegel põe em xeque o "prefaciar" tradicional, em suas virtualidades e insuficiências, bem como a maneira pela qual ele o contrapõe a outros modos que se lhe pretendem alternativos, já é iniciar-se na compreensão do "método" (com todas as aspas) e do "projeto" (com algumas aspas) hegeliano.



Duas observações aqui são necessárias. Primeiramente, Hegel não é, como se costuma dizer, o filosófo do método dialético. Ele realmente teoriza sobre o pensamento dialético (ou especulativo, como ele também o chama), e o exercita (ou melhor, o exerce) a todo momento, em suas obras.



Mas, para ele, a dialética não é uma técnica extrínseca aplicável ao pensar filosófico, uma espécie de bicicleta lógica que exija, para cumprir sua finalidade, a obediência ao seu mecanismo interno: ao contrário,ela integra visceralmente este pensar (como uma espécie de "sangue do espírito"), e se manifesta plenamente quando ele está despido de (pseudo)métodos, de caminhos que mais desviam do que aviam.



Em segundo lugar, e em decorrência do que fora dito, Hegel também não é o filósofo da "tese, antítese e síntese", por mais que ele acolha, aqui e ali, o emprego desta terminologia. Esta tríade conceitual, no modo como hodiernamente se apreende, fora apresentada por Fichte, filósofo dito "idealista", contemporâneo a ele, mas ainda relativamente adstrito à filosofia transcendental kantiana.



Hegel utiliza, com mais frequência, expressões como "afirmação simples, negação abstrata, negação dialética, posição, contradição e suprassunção", mais preocupado em evidenciar as passagens entre os momentos e as figuras da consciência do que em reduzi-las ao formalismo de um esqueleto lógico (formalismo que ele irá, inclusive, criticar mais adiante no próprio Prefácio).


Vistos estes elementos, torna-se mais claro o importante papel do prefácio hegeliano. Observ-se, aliás, que ele não é um prefácio dirigido unicamente à Fenomenologia do Espírito: ele é uma apresentação geral do Sistema da Ciência, plano cujo primeiro volume consistia, para Hegel, naquela obra. Por isto, inclusive, se verifica uma mudança no tom e no modo deste em relação à Introdução, a qual se destina realmente a imiscuir o leitor no terreno da fenomenologia hegeliana.


O Prefácio, portanto, não se destina a conduzir o leitor para algum lugar definido, nem visa atingir uma meta específica. Seu intento, ao contrário, é servir de vereda para um retorno reflexivo da consciência filosófica, a qual precisa abandonar a multitude caótica e infindável de textos e contextos à sua frente, para poder rememorar, numa demorada meditação, os passos da evolução do saber enquanto fenômeno, realizando a experiência de si mesma neste vir-a-ser, que é a missão da Fenomenologia.



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