A cerrada argumentação
aristotélica a respeito da ciência do ser enquanto ser, desenvolvida no Livro Gama da Metafísica, se destina a demonstrar a sua tese
fundamental (o ser se diz em vários significados, mas referidos a
uma unidade), a explorar as suas consequências, mas, também, a
refutar os “adversários” de uma tal tese, aqueles que se lhe opõem ou se lhe oporiam.
Em verdade, a tese de Aristóteles
não possuía, ainda, adversários explícitos, diretamente
constituídos na forma de um debate público, uma vez que seus
escritos eram de natureza esotérica,
isto é, destinados a circular internamente entre os alunos do seu
Liceu.
Ele
até chegou, de fato, a publicar obras de natureza exotérica,
destinadas ao grande público,
sendo, talvez, o primeiro autor da História do Pensamento Ocidental
a fazê-lo com competência, escrevendo em dois níveis para dois
auditórios diferentes: o dos alunos e dos demais cidadãos. Infelizmente, porém, estas obras exteriores se perderam
no tempo, e não chegaram a nós. Cícero, que a elas teve acesso, dizia que elas eram “um
rio de eloquência”, bem diferente do caráter seco e conciso do tratado
ora em estudo, a respeito da prote philosophia.
Seja
como for, o fato é que Aristóteles, ao nomear seus adversários nas obras internas que chegaram a nós, o
fazia em vista da divergência potencial que os mesmos manifestariam
em face das suas teses, uma vez que os mesmos não estavam lá no Liceu para opinar,ao menos regularmente.
E
o mais interessante é que o velho estagirita não indica apenas
eventuais opositores para as suas proposições fundamentais: ele
indica virtuais adversários da disciplina que ele estabeleceu, a
ciência do ser enquanto ser.
Igualmente curioso é o fato de que, neste caldeirão refutatório, ele coloca quase todo o mundo que o precedeu, e por razões específicas a cada caso.
Igualmente curioso é o fato de que, neste caldeirão refutatório, ele coloca quase todo o mundo que o precedeu, e por razões específicas a cada caso.
Na
prática, escaparam apenas os platônicos, mas estes também foram
por ele enquadrados em um rosário de acusações. Não o foram, é verdade, como inimigos da parte da prote
philosophia que hoje denominamos Ontologia; mas
foram contrapostos à tese bi-nuclear a respeito do sentido do ser, por ele apresentada. Isto será
visto no próximo estudo.
Assim,
para se ater apenas aos “inimigos da ontologia como tal”, registre-se que
Aristóteles assim os identifica: “filósofos naturalistas”,
dialéticos e sofistas. Cada um deles guarda alguma espécie de
aproximação com a Filosofia, mas também possui algum aspecto que
dela os afasta.
Além
disso, eles também mantém certas relações de proximidade entre si
(para além da aproximação inicial do serem incompatíveis com a
ontologia), sendo também articuláveis entre si segundo certos
critérios.
Por
isto, importa esclarecer-lhes as características específicas, antes
de proceder ao estudo comparativo dos mesmos.
Por
filósofos naturalistas, Aristóteles compreende os pensadores que
hoje denominamos de pré-socráticos.
Apesar de exibirem concepções filosóficas as mais diversas entre
si, amiúde irreconciliáveis, tais indivíduos se deixam compreender
globalmente sob a alcunha de “pensadores da Physis”. O
rol de nomes se estende por cerca de quase três séculos, de abrange
de Tales e Anaximandro a Demócrito e Anaxágoras.
Dialéticos,
por sua vez, são os indivíduos que (para Aristóteles, lembre-se)
não se dedicam a nenhum campo de investigação especial, mas que
investigam aquilo que lhes convém ou interessa no momento, sem
roteiro, sem ordem, e sem princípio. Sua ferramenta de pesquisa
consiste unicamente no diálogo,
razão pela qual o seu labor consiste em examinar questões,
defendendo ou combatendo teses a respeito dos assuntos escolhidos
como pauta.
Lembre-se
que Aristóteles reconhece o valor do raciocínio dialético,
dedicando a ele um amplo espaço no bojo da suas reflexões,
considerando-o essencial em face de questões que não podem
submeter-se ao crivo da demonstração rigorosa (em
grego, apodeixeis),
que a posteridade depois chamou
de lógica analítica ou demonstrativa. Esta se atinha a atuar em
face de premissas inquestionáveis, absolutamente certas, como eram
considerados os postulados da geometria.
Em
contrapartida, diante de questões a que só se podia oferecer pontos
de partida respeitáveis, como opiniões doutas (endoxa),
admissíveis mas questionáveis, o raciocínio não se valia da
demonstração, mas da comparação das teses, razão pela qual só
pode chegar a conclusões prováveis.
Por
fim, Aristóteles indica os sofistas,
indivíduos desacreditados também por Sócrates e Platão, que
afirmavam possuir técnicas argumentativas e discursivas para provar
qualquer tese, inclusive teses contrárias ou contraditórias entre
si, e que, por consequência, afirmavam a inexistência de critérios
gnoseológicos seguros para o alcance das verdades fundamentais, bem
como para a obtenção de conhecimentos absolutamente certos, tanto
no plano da realidade natural quanto no plano dos valores e do agir.
Para
julgar tais grupos assim configurados, Aristóteles recorrerá a
alguns critérios. Destaque-se, em primeiro lugar, o do caráter
filosófico. Quanto a este, os
fisiólogos seriam afins à ontologia, na medida em que também fazem
investigação filosófica, ao passo em que os dialéticos e os
sofistas se situam, a seu ver, fora das fronteiras da filosofia
(1004b 5-10).
Em
contrapartida, porém, pelo critério da pergunta pelo ser,
os fisiólogos ficam de fora da roda (a sua pergunta não se dirige
ao ser enquanto ser, mas à physis) ,
enquanto que os dialéticos e os sofistas nesta se incluiriam, cada
qual à sua maneira.
Além
do mais, segundo Aristóteles, os fisiólogos não trataram da
substância (ousia),
que para ele é o significado principal de ser,
conforme ele definirá e aprofundará mais adiante.
Pelo
parâmetro dos fins da especulação,
a ontologia se irmana à “fisiologia” e à dialética (1004b
15-30), na medida em que as três buscam a verdade, enquanto que a
sofística, para Aristóteles, busca a persuasão através da
verossimilhança (aparência
de verdade), explorando os diversos significados de ser
sem procurar determinar qual é o verdadeiro, e empregando
alternativamente um ou outro conforme o interesse do momento.
Finalmente,
sob o ponto de vista do modo de especular,
a ontologia estaria mais próxima da filosofia da physis e
da sofística, e mais distante da dialética. A razão para isto é
que as três primeiras buscariam a demonstração de suas teses, com
a diferença de que a primeira a partir de princípios
garantidamente verdadeiros e suficientes, a segunda a partir de
princípios em parte errados ou insuficientes, e a terceira com base
em premissas conscientemente falsas. A dialética, em contrapartida,
não prossegue pela via da demonstração, mas pelo confronto
avaliativo dos prós e contras, padecendo
tanto do método demonstrativo quanto do princípio seguramente
verdadeiro.
E
será justamente em função da combinação heterogênea dos quatro
critérios acima que as três disciplinas contrapostas à ontologia
por Aristóteles haverão de se comportar diferentemente com relação
aos dois elementos nucleares da tese aristotélica sobre o ser: a
multiplicidade de significados e
a referência à unidade.
Os
sofistas reconhecerão, como Aristóteles, a pluralidade de sentidos
nos quais o termo ser é
dito ou empregado. Porém, farão alarde desta multiplicidade,
considerando-a uma confusão caótica , anárquica e inarticulável.
E farão, inclusive, uso deliberado desta confusão (que é aparente,
para Aristóteles, e não verdadeira), para optarem
circunstancialmente pelo significado mais útil à ocasião.
Os
fisiólogos, ao contrário, partirão da busca por um significado
fundamental de ser. Afinal, enquanto investigadores da Physis,
eles necessariamente a consideravam como princípio unificador da
realidade, como os primeiros Jônicos – Tales, Anaximandro,
Anaxímenes. Alguns acabaram, inclusive, chegando ao ponto de negar
toda multiplicidade em favor da unidade do ser,
como Parmênides e seus discípulos. E outros foram autênticos
filósofos do uno ou da unidade, como
Pitágoras, Xenófanes e Heráclito (Unidade harmônica no primeiro,
Unidade divina e transcendente no segundo, Unidade imanente e
inteligível no terceiro).
Os
dialéticos, por fim, se davam conta da multiplicidade, e partiam em
busca da unidade. Mas, por seu método e seu ponto de partida, não
conseguiam encontrar uma articulação na primeira, e, por tabela,
não logravam vislumbrar a segunda, uma vez que não alcançaram a
primazia do ser enquanto substância.
Apesar
do caráter polêmico e questionável de certas caracterizações e
consequentes críticas de Aristóteles a adeptos de outras
concepções, o seu esforço intelectual no sentido de efetuar
distinções (inteligíveis sempre, inda que não aceitáveis,
eventualmente), possui o mérito inegável de indicar claramente a
existência de diversos modos de conhecimento, alternativos entre si,
bem como diversos atitudes em face de um conhecimento já
estabelecido. Ambos os elementos estão presentes de maneira
específica em cada filósofo, mas também se verificam, com suas
peculiaridades, nas demais formas de interação pensante do homem
com a realidade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário