Quando
Sócrates, em casa de Polemarco, encontra Céfalo (pai deste),
coroado e ornado em um digno traje de cerimônia, resolve perguntar
ao mesmo acerca da velhice, se é penosa ou não (328e). Obviamente,
o indagou por não estar certo disto, nem do seu contrário. Além do mais, ele acabara de ter vislumbrado um ancião em contexto e situação que
denunciavam um glorioso crepúsculo de vida.
Antes, porém, de decidir-se a este
respeito (ouvindo, inclusive, a opinião do nosso personagem),
devemos investigar em que consiste propriamente isto, a velhice, para
sabermos se ela pertence ao grupo das coisas que podem ser boas, más,
boas ou más, ou nem uma coisa nem outra.
De saída, notamos que a velhice
não é uma realidade substancial,
mas uma circunstância acidental, em
que pese o uso de um jargão de inspiração aristotélica, o que, em verdade, não fere o propósito deste estudo: afinal,
trata-se não de exibir o pensamento platônico (leia-o para tanto quem o deseja),
mas de pensar a partir dele, compreendê-lo.
A
velhice é uma coisa que não pertence ao homem enquanto homem (como
sua animalidade, para alguns), mas ao homem enquanto uma criatura
temporalmente finita e temporalmente aniquilável.
Acidental,
obviamente, não quer dizer sempre algo fortuito (como o estar
sentado), irrisório (o número exato de fios de cabelo), ou
secundário (ser branco ou negro). O acidente é uma propriedade que
repousa sobre as propriedades essenciais, e que ajuda a
concretizá-las. Em outras palavras, o que há de acidental aí é
ser esta ou aquela circunstância a incidir sobre o ente, agora: mas é essencial que haja
circunstâncias. Se não há tal circunstância, há alguma outra em
seu lugar: não importa qual, mas você terá uma certa idade a cada
vez.
Como
circunstância, a velhice se mostra, ainda, como uma circunstância
correlativa: ela se define por
oposição a uma outra, a juventude (ou a mais de uma, para quem introduz divisões intermediárias). A realidade substancial, ao
contrário, é definível em si e por si: o homem é um ser vivo.
Neste
panorama, pareceria fácil discernir a questão proposta, dizendo: só
realidades substanciais seriam absolutamente boas ou más, ao passo
que as circunstâncias acidentais correlativas poderiam ser boas ou
más conforme a correlação estabelecida. Assim, por exemplo, a velhice seria pior que a
juventude, mas melhor que a morte...
Temos
aí o caso de um escalonamento temporal, de uma sucessão de estados,
cuja correlatividade é justamente isto: cronológica. É o tempo aí
que define, e linearmente, a qualidade do estado (afinal, são
estados temporais),
numa cadeia de malignidade crescente ou de benignidade decrescente
(se o bem é o tempo, quanto menor ele se torna, maior o aspecto
maléfico da situação).
Porém,
nem toda correlação se efetua assim, tão facilmente. Nem todas
elas se dão entre modos ou graus de
uma mesma realidade substancial. Veja-se que ali partiu-se de uma
essencialidade humana: a temporalidade (ou temporariedade). Foi
justamente em referência a esta que se tornou possível avaliar as
relações entre as diversas circunstâncias.
Mas,
pense-se no caso de uma limitação física, contraposta à ausência
da limitação. A correlação aí se efetua entre um bem e a sua
ausência, mas ambos circunstanciais, ainda que uma seja considerável
como circunstância comum e
a outra incomum. Neste
caso, veja-se que a correlação não é intensiva,
comparando-se graus do mesmo.
Ela articula e comprara uma tensão (uma
qualidade, potência, tendência, propensão) e a sua falta: é uma
correlação tensiva.
Finalmente,
pode se dar o caso de uma circunstância ser correlativa a outra
significativamente heterogênea a ela. É o caso de se comparar,
enquanto tendências inatas, a força braçal e a destreza manual.
Estas, obviamente, podem se agrupar sob um gênero comum, o das
aptidões físicas, como espécies desta.
Haverá,
decerto, outras heterogeneidades mais dificilmente agrupáveis, mas a
correlatividade pressupõe um nexo comum, ainda que mínimo: no
limite, todos os entes partilham da correlatividade universal que é
ser, e todas as
circunstâncias, mesmo as mais diversas entre si, partilham da
correlatividade particular que é ser uma circunstância. Neste caso, trata-se de uma correlação extensiva, na
medida em que o elemento a ser julgado numa circunstância é
exterior à outra, e vice-versa.
Veja-se,
portanto, a multiplicidade de níveis nos quais uma circunstância
pode ser julgada, desde a sua distinção em face das realidades
substanciais, até as formas de se lhe comparar com outras
circunstâncias (por grau, presença ou gênero).
Porém,
a situação se complica ainda mais ao se notar que, sob certos
pontos de vista, a própria distinção entre o substancial e o
circunstancial, entre o essencial e o acidental, se relativizam. Para
o indivíduo que nasceu com uma determinada limitação, ela lhe é
substancial: as circunstâncias se sucederão em face dela.
Parece,
inclusive, haver um critério para a aferição desta relatividade:
uma circunstância duradoura (definitiva ou não) se aproxima mais da
substancialidade, e por uma razão bem simples: o substancial, numa
coisa ou realidade, é aquilo que perdura, que permanece.
Aí
é que está: a velhice dura. Quando ela chega, ela se demora até a
morte. Duração indefinida, decerto: o cidadão pode findar no dia
em que se deu por velho... Duração problematicamente verificável:
em que dia começa a velhice?
Diante
disto, outra consideração se impõe: se a velhice é relativamente
substancial, se não é uma circunstância meramente acidental, como
outras, isto significa que ela escapa, em parte, à correlatividade.
Por conseguinte, ela deve ser julgada, em parte, por sua benignidade
ou malignidade intrínsecas, e não somente em comparação a...
Mas,
quais são os modos de se julgar o valor intrínseco de algo, mais
especificamente, o valor de algo como um bem (ou
o seu desvalor enquanto mal)?
Esta é, simplesmente, a questão crucial da ética.
E a ela a Ética, sozinha, não resolve. Ela precisa dos elementos
fornecidos por alguma ontologia estabelecida e aceita; é com base
nela que se obterá os critérios para a dicção do bom e
do mau.
Porém,
sem sair ainda do plano do julgamento ético formal, é possível
vislumbrar uma outra face da questão: ora, se podemos ver uma
circunstância duradoura como relativamente substancial, podemos ver
uma substancialidade como relativamente circunstancial, caso sua
permanência seja fugaz no tempo ou precária ante as possibilidades
de aniquilamento.
Assim,
um pequeno ou frágil bem intrínseco pode ser considerado um mal
diante da sua supressão definitiva e da condenação à sua ausência
e falta, do mesmo modo que um pequeno ou frágil mal pode ser tido à
conta de um bem quando de sua rápida solução ou desaparição em
face de uma situação mais benigna.
E
assim, apesar de sua substancialidade, os bens e os males podem ser
apreciados em vista daqueles modos de correlatividade: pelo grau do
bem ou mal que os sucedem, pela presença ou ausência de um bem\mal
definitivo, ou por um critério comparativo extrínseco.
Num
tal quadro complexo, vê-se o quão dificultoso será equacionar a
questão da velhice enquanto bem ou mal. No contexto da República,
o leitor perceberá que a mesma
é facilmente resolvível em razão do consenso prévio dos
interlocutores no tocante a certas premissas ontológicas, e por
tabela, éticas. Em todo caso, mesmo diante de um conjunto de
pressupostos estabelecidos, a relatividade e a correlatividade ainda
se insinuam, a requerer atenta meditação, nem que seja para a
precisa delimitação da incidência de cada qual no âmbito da
discussão em foco.
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