Há quem diga que a educação vive uma crise; mas, sempre houve quem
o dissesse. Não há como discordar de uma tal assertiva; contudo,
não há como endossá-la plenamente. A educação não vive uma
crise, como uma tormenta fragorosa para além da qual há sol e
brisa, ou como um processo agudo a aguardar por seu desfecho. A
educação é a crisis, a
eterna encruzilhada humana – entre o legado da tradição e
inovação do momento, entre a pausa reflexiva para apreender o mundo
e a necessidade de passar à ação, entre a crítica dos valores
vigentes e a defesa dos princípios atemporais, numa palavra: entre o
que há sido e o que pode (ou não pode) ser.
Esta é a raiz da grande opressão
– a ontológica, a essencial, a imanente –, da qual toda outra
opressão é concretização ôntica, existencial, manifesta. O homem
oprime o homem porque a vida oprime a vida, porque ser oprime todo
ente, o obriga a continuar sendo. O homem oprime o homem para
transferir ao outro o fardo da necessidade, para que este o carregue
para si, para tentar ser livre, para tentar ser plenamente.
Mas todo homem é oprimido. A opressão ao outro é tentativa de
minimalização da opressão em si, e não sua supressão – o
senhor está oprimido pela necessidade de manter a opressão, pela
opressão atual do superior a si, e pela opressão virtual do seu
concorrente.
Por isso, a assim chamada pedagogia
do oprimido acerta e erra,
entende e confunde, esclarece e obumbra, desvela e vela. Ela acerta
ao apontar para a opressão; mas erra ao apontar pra só uma delas.
Ela entende e articula a condição de vítima e de oprimido, sempre
coadunáveis, mas confunde a condição de opressor com a de algoz,
algo nem sempre factível. Ela esclarece ao desvendar-lhe o
mecanismo, mas obumbra ao não tematizar a possível causa histórica
(ou meta-histórica, natural), que exigiu sua construção. Por fim,
ela desvela os caminhos para a libertação do oprimido, pela
superação das contradições a combater, mas vela os caminhos para
a plena conscientização da opressão essencial e de sua
contradição, a qual não deve ser resolvida, mas fortalecida: a
contradição do homem com o universo, chamada vida,
e cuja solução é a morte.
Justiça, porém, há que ser feita: o que há de eventual equívoco,
penumbra, confusão ou velamento na insigne obra freireana não se
deve atribuir a uma falha, lapso ou negligência, mas a uma finitude
– ele foi até onde lhe fora dado ir; mas todo lá é um até-aqui,
e sempre há um mais além. Ele foi até o extremo da opressão
marginal, da opressão excludente, da opressão estrutural; todavia,
ainda há opressão para quem está no centro, para o incluído: há
uma opressão substancial.
Em todo caso, porém, ele começou a jornada pelo lugar correto.
Iniciar a partir dos oprimidos máximos é avançar na contramão da
opressão, desbastando-lhe as camadas econômicas, políticas,
jurídicas, culturais, históricas, naturais, rumo à longínqua e
intangível opressão ontológica originária. Começar a libertação
da periferia para o centro é o caminho para perceber que não há
centro, que o lugar privilegiado de certos sujeitos também está
margem de outros centros de opressão, de outras instâncias
endógenas, diáfanas, sutis, tal como o famoso círculo infinito de
Nicolau de Cusa, imagem que ele usou para representar Deus, mas que
ilustra bem o fardo universal do Ser: uma circunferência cujo centro
está em toda parte, e cuja superfície está em parte alguma.
Há que libertar, portanto. Por todos os meios e modos imediatamente
acessíveis ou mediatamente acessáveis. Mas não qualquer liberdade.
E não para qualquer objetivo. Há que libertar o homem do homem em
toda a parte e sempre. Há que libertar o homem da vida, sempre que
possível for, avançando contra o que outrora era injunção
incontornável – a doença genética, a necessidade insanável, o
perigo ambiente.
Porém, não há que fazê-lo para o entregá-lo simplesmente a si,
no deleite interminável de bens de consumo (opressão do desejo), na
segurança quietista da vida planificada (opressão do medo), ou na
entrega desesperada ao momento instante (opressão da angústia). Há
que libertar o homem para que ele, finalmente, livre das amarras
biológicas, dos óbices psicológicos, dos entraves sociológicos ou
das limitações históricas, possa se entregar livremente à
opressão do ser, assumindo-lhe o jugo suave e o fardo leve, deixando
de tão só sobreviver para então existir, co-existir e criar.
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