Sabe aquele raro momento em que você está refletindo acerca de algo e a Vida, para fazer você acreditar no que está pensando, pega e transforma aquilo num acontecimento exterior arquetípico?
Ontem, estava a passear com Beethoven pelo condomínio. Quando o faço, levo sempre comigo um saco para recolher a sujeira que ele faz, amarrando-o e o pondo na lixeira que há no trajeto de volta pra casa.
Pois bem. Já retornando pra casa, deparo com uma senhora que, estancando a alguns passos de mim, começou a comentar, de si para si, em voz audível, sobre o egoísmo, falta de educação, decência e cidadania desta gente que "deixa os animais emporcalharem a área, obrigando os demais a suportar tudo aquilo", de um povo que "não tem nem a dignidade de recolher a porcaria", e afirmando que vai "colocar veneno pra acabar com a essa palhaçada".
Sentindo-me profundamente injustiçado, controlei meu ímpeto ariano, e procurei refletir.
É horrível ser julgado, condenado e punido por uma inverdade. Da inverdade para o preconceito, para o estereótipo, e para o achincalhe do outro, vai só um passo.
Mas notem que, no momento, ela me julgou a partir de uma realidade: eu estava sem o saco na mão.
Os fatos não mentem, por certo. Mas também não dizem a verdade.
Os fatos nada dizem. Nem calam.
Os fatos nada significam. Pela mesma razão, nada ocultam.
Contudo, se a realidade não pode mentir, o olhar pode. Para isto, basta uma condição bem simples: que o olhar fale. Afinal, até onde eu sei, o olho não é feito pra falar.
Mas, como poderíamos nos precaver para não mentir com os olhos?
Há muitas boas respostas para isto. Mas, hoje, só falarei de uma delas, talvez a origem das demais: evite o olhar apressado.
O olhar apressado quase sempre mente. Sabe por quê? Porque ele, mal olhou, já está falando. É um olhar tagarela. É um quase-não-olhar, e um quase-tão-só-discurso.
Falando francamente: o olhar que mente é Discurso.
Quando você "vir" uma mensagem que se presta a se espalhar rapidamente, sobretudo por este "Canal", desconfie: estás diante de um Discurso. Chamo Discurso, neste contexto, a um falar sem ver.
Falar sem ver é mentir.
Aliás, como aconteceu comigo, até vendo (ou achando que se está vendo) é possível mentir.
E vejam que estou excluindo a hipótese da má fé, que torna a coisa ainda mais grave, mas é assunto pra outro dia.
E o mais triste é que a Mentira, enquanto relação de "olhar apressado + discurso", é correlativa, bitransitiva e simétrica, entre seus termos:
Se o olhar apressado mente, o Discurso (o falar apressado) cega.
Em lugar da realidade, o Discurso só nos mostra imagens, representações, estereótipos. Ficções.
Só há Idéia no intervalo demorado entre um ver devagar e um falar devagar.
No ver devagar, há reflexão. No falar devagar, há escuta.
Quando há reflexão e escuta, há idéia mais idéia. Há diálogo.
Volto a dizer: a realidade não mente. Mas é preciso aprender a ver.
A imagem de um lápis fraturado num copo dágua meio cheio, não é a visão enganosa de um lápis quebrado: é a visão verdadeira de uma refração da Luz.
Nesta Eleição, quanta vez fizemos isso? Quanta vez julgamos, apupamos, condenamos, execramos pessoas, candidatos, eleitores e grupos que pensam diferente de nós, ou que estão sendo vítimas de um não-pensar? Será que nós também não exercemos, muita vez, o não pensar, a irreflexão?
Eu sempre me arrepio quando me recordo de uma máxima da Hanna Arendt, sobre o caso Eichman: "O mal é ausência de pensamento".
Amanhã, sairei com meu cachorro a passear novamente. E, em função do que aconteceu comigo, tentarei não julgar a face do Cubo chamado Verdade, que a realidade mostra para mim, a cada vez.
Para quem quiser escutar, o que eu disse agora se resume ao sentido de duas palavras gregas: Nous e Logos.
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