Tem que haver alguma coisa em vez de nada?
Quem já não se atormentou com esta pergunta? Ou, ao menos, com indagação parecida?
Quando menino, eu vez por outra deitava no chão, olhava pro céu e questionava: como é que é possível que eu exista? Como é que Deus criou este ser que é meu? Será que ele me criou do mesmo jeito que as outras almas?
Eu achava que não: pois, como é que este eu, que está separado de tudo aquilo lá que é o mundo, de todas aquelas outras pessoas, foi criado junto com ele e com elas?
Eu achava que não: pois, como é que este eu, que está separado de tudo aquilo lá que é o mundo, de todas aquelas outras pessoas, foi criado junto com ele e com elas?
Não é preciso ser cristão, muito menos deísta, para exercitar interrogações deste tipo. Basta pensar filosoficamente.
Alguns dos grandes nomes da Filosofia se fizeram este questionamento. O último dos gigantes, Martin Heidegger, costumava encerrar pequenos ensaios com a pergunta que ele considerava a maravilha de todas as maravilhas, o mistério de todos os mistérios: por que é que há o ente, e não antes nada?
Não tentarei responder a esta pergunta no espaço de um pequeno texto. Mas procurarei contribuir para a reflexão acerca dela, a partir da meditação de uma questão importantíssima ligada a ela: por que é que eu posso fazer esta pergunta? O que é que me possibilita fazê-la?
Existem muitos níveis de resposta para ela. Ficarei no nível mais elementar, essencial a todos os outros, e direi: o que me torna possível fazer uma pergunta como esta são as palavras que a compõem.
- Então você está dizendo que tratará uma pergunta filosófica como uma espécie de consulta ao dicionário?
- Não. Para além da mera indicação lexical dos termos, cada palavra desta pergunta encerra em si um problema-chave da Filosofia. Vejamos
“Por que”. É a pergunta pelo quid, pelo quê da coisa. E para cada época ou autor, diferirá este quê. Ele poderá ser elemento, princípio, causa, essência, substância, natureza, razão, fundamento, etc. Muita coisa, não?
“Existe”. O sentido de existir abrange possibilidades como: ser, estar no mundo, ser criado, ser incriado, ser casual, acontecimento, evento, ocorrência, finitude, temporareidade, vir-a-ser, perceder, mudar, permanecer, viver, durar, insistir, competir, coexistir, sobrexistir, parecer, aparecer, ser em si, ser para si, ser para um outro, ser em um outro, etc. Cada uma das possibilidades engendrará um corte diferente na realidade, perante o qual o pensador decidirá o que existe ou não.
“o Ente”. Também aqui a pluralidade interpretativa é potencialmente infindável. Ente pode ser: coisa, fenômeno, criatura, mônada, forma, matéria, força, substrato, realidade, unidade, composto, relação, e assim por diante.
“e”. Até mesmo o simples conectivo intervocabular que conhecemos como conjunção coordenativa pode sinalizar diferentes relações conceptuais: continuidade, contiguidade, associação, companhia, justaposição, sincronia, alternativa, dualidade, sucessão, adição: e por aí vai.
“não”. Outra palavra fundamental do pensamento, que pode significar diferentes realidades ou atitudes: inexistência, ausência, falta, recusa, transcendência, desaparição, contradição, oposição, contrariedade, inversão, superação, subsunção, suprassunção, desconstrução, nadificação.
“antes”. Muitos filósofos, se fossem indagados acerca do papel dos advérbios temporais, talvez nos dissessem que não são eles que acompanham ou modificam os verbos, mas estes é que lhes acompanham ou concretizam. Assim, e para ficar só na relação de anterioridade, eis que ela pode significar: precedência cronológica, prioridade lógica, primeiridade cognitiva, primazia valorativa, prevalência prática, e muito mais.
“o”. Aquilo que nós entendemos como um artigo definido, a cumprir unicamente o papel de estar ao lado (adjunto) do nome, é algo que também variará de sentido conforme a perspectiva filosófica. Para empiristas, sensacionistas, materialistas, céticos, nominalistas, ele será uma palavra meramente indicativa, um sinal sem significado – para alguns, deveria até ser considerado um dêitico (um indicador espaço-temporal) do estar aí singular da coisa. Para metafísicos, racionalistas, espiritualistas, teístas, universalistas, ele talvez possa servir como um marcador de abstração ou de substancialidade, um indicador de que aquele substantivo exista como realidade ao lado das coisas que o recebem – como Platão, por exemplo, para quem (de maneira mui simplificada) Homem é uma Idéia que “existe” eternamente para além dos homens de carne e osso.
“nada”. Este também diferirá de apreciação conforme o gosto do freguês: conceito fundamental da metafísica, flatus vocis (mero sopro sonoro), signo sem significado, nulidade, vacuidade, inexistência, zero, fim, princípio, silêncio, treva, abismo – e todos os sentidos acima atribuídos a "não".
Com base nesta simples amostra, é possível notar os inúmeros arranjos conceituais que poderíamos fazer com base em cada uma das interpretações alternativas dos temos componentes. Como consequência, a quantidade de sentidos possíveis para a pergunta explode exponencialmente. Evidentemente, algumas das combinações seriam filosoficamente indefensáveis, ou mesmo destituídas de sentido. Porém, a quantidade de opções hermenêuticas básicas ainda permaneceria muito grande. E o que é melhor: para cada sentido ou interpretação da pergunta, inúmeras são as possibilidades de resposta. Talvez tantas quantos são os entes, de sorte que poderíamos até mesmo concluir perguntando: “por que a pergunta pelo ente, e não o silêncio”?
Um comentário:
or que você não cria uma conta no ask.fm? Certamente é melhor como plataforma de perguntas.
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