Livro dos Espíritos - Introdução - 4. Sobre o Método espiritista

Após importantes esclarecimentos sobre as noções de Espiritismo e de Alma, Kardec prossegue no seu estudo introdutório indicando outro elemento essencial: a origem histórica do espiritismo, o curso de eventos cujo desenrolar progressivo culminou no estabelecimento da Doutrina dos Espíritos, recolhida pelo Codificador, mediante um método já estabelecido, dentro de uma práxis espírita mediúnica já consolidada.

Kardec classifica a Doutrina Espírita, o conjunto articulado de ensinamentos trazidos por aquela plêiade de espíritos codificadores, sob o comando do Espírito de Verdade, como uma Filosofia Espiritualista. Esta é a essência da doutrina, a sua natureza – isto, obviamente, em se tratando do Livro dos Espíritos. Não significa dizer que o Espiritismo se adstrinja unicamente ao plano filosófico – como veremos oportunamente, outras obras fundamentais da Doutrina possuem natureza diversa, ora inclinando-se mais para o campo científico-empírico, ora adentrando a esfera do pensamento teológico-religioso. É o tão falado – e também muita vez mal entendido – aspecto tríplice da Doutrina.

Em todo caso, já neste momento inicial, é crucial que se distinga a Doutrina dos Espíritos e o modo histórico de sua aparição, a sua essência mais profunda e o fenômeno que a manifestou no seio da cultura européia novecentista. Não por acaso, após dois tópicos dedicados a questões terminológicas, Kardec passa a analisar o processo histórico de formação do Espiritismo.

A Doutrina revelada em O Livro dos Espíritos é, sem dúvida, uma Filosofia Espiritualista. Mas, terá ela surgido historicamente como uma filosofia, ou mesmo como uma religião?

Ela não veio ao mundo na forma de uma Filosofia, de um sistema de pensamento oriundo de longa e acurada reflexão do professor Rivail.

Tampouco surgiu imediatamente nos mesmos moldes de uma Religião, de uma verdade transcendente revelada.

Seu surgimento paulatino se deu a partir da eclosão inexplicada do fenômeno das mesas girantes, que atraiu a curiosidade científica de muitos investigadores, dentre eles o que futuramente assumiria a alcunha de Allan Kardec e exerceria o papel de Codificador.

Acompanhando Kardec, vemos o desenrolar do processo: primeiro, o espanto diante do aspecto físico do fenômeno, o fato de que mesas e outros objetos pesadíssimos flutuavam no ar, se punham a girar e a produzir movimentos sem aparente intervenção humana.

Antes de avançar, porém, façamos uma pausa para destacar um aspecto importante: na época em que começou a investigar os referidos fenômenos, o professor Rivail era adpeto de uma corrente filosófico-científica denominada Positivismo, criada pelo seu conterrâneo August Comte algumas décadas antes. Esta filosofia defendia o primado da Ciência como forma suprema de saber, e preconizava que o objeto de toda ciência deveriam ser os fatos, e nada mais. Toda ciência genuína deveria partir da observação e da experimentação, mediante um rigoroso método científico, de modo a testar hipóteses e teorias obtendo leis.

Isto tem levado historiógrafos do pensamento científico ou filosófico, vez por outra, a considerar o Espiritismo como um fruto direto do Positivismo, totalmente identificado com seus princípios e fortemente influenciado em seu conteúdo.

Alguns, inclusive, chegam a supô-lo fenômeno histórico superado, como o Positivismo hoje em dia.

Nota-se, em tal modo de pensar, dois comuns equívocos do pensamento, aos quais o estudioso espírita deve compreender para evitar: a confusão entre condição e causa, e entre origem e essência.

O fato de determinada iguaria ter sido preparada em panela de barro ou de metal não a torna, só por isto, barrossa ou metálica.

Muita vez, o conhecimento adquirido por um cientista através da aplicação de determinado método sobrevive ao próprio método.

Inúmeras verdades oriundas do século de Galileu, muito anteriores ao próprio Positivismo, permanecem até os dias de hoje. Algumas delas precedem, inclusive, até mesmo a noção moderna de método científico.

Além do mais, note-se que a gradativa transição entre o professor Rivail investigador dos fenômenos ditos magnéticos ao Kardec estudioso dos já evidentes fatos espíritas implicou significativas mudanças na metodologia adotada.

Veja-se, por exemplo, o chamado Controle Universal dos Ensinamentos dos Espíritos, instância de verificação da validade de afirmativas e hipóteses obtidas declarativamente dos espíritos por via medianímica, e que contradiz, a princípio, o imediatismo da comprovação empírico-positiva.

Diga-se, portanto, de forma conclusiva: nem a origem histórica das investigações empírico-positivas se confunde com a essência supra-histórica da Doutrina dos Espíritos, nem tampouco o método positivo, enquanto condição inicial da investigação, deve ser confundido com a causa espiritual da mensagem revelada, que são os próprios espíritos codificadores.

Aliás, o sempre lúcido Kardec, em momentos diferentes de sua obra, teve oportundiade de exercitar diferentes métodos de abordagem ao longo da codificação. Daremos quatro exemplos.

Em O Livro dos Espíritos, mostra-se o método propriamente espírita, de controle e verificação dos ensinamentos dos espíritos, recolhidos por Kardec num papel mais passivo de perguntador, organizador e comentador. Tal método guarda alguma semelhança com os métodos da Religião, uma vez que se trata de uma verdade revelada pelos espíritos, mas com um controle racional rigoroso do investigador encarnado que a obtém, analisa e classifica.

Em O Livro dos Médius, um Kardec mais positivista entra em cena, o estudioso que presenciou milhares de comunicações espíritas, classificando os tipos de mediunidade, descrevendo a fenomenologia de cada uma, indicando prescrições metodológicas para a realização dos trabalhos, como verdadeiro cientista longamente habituado com o fenômeno de que se ocupa.

A Gênese, por sua vez, apresenta um caráter híbrido bastante interessente, com um caráter mais hipotético que teórico, na qual temos a oportunidade, por exemplo, de presenciar um cientista desencarnado (Galileu) em ação, elaborando hipóteses sobre certas realidades (como sobre o que há no lado oculto da Lua), sem pretensão de definitividade, submetendo-as ao crivo da verificação e experimentação como qualquer cientista terreno.

Céu e Inferno já exibe um método genuinamente filosófico, pautado na abordagem direta a temas, idéias e teorias clássicas, com análise de suas implicações, confronto com os novos postulados e axiomas trazidos pela Doutrina dos Espíritos, e extração lógica das consequências das novas idéias sobre pontos fundamentais da teologia cristã até então.



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