A concepção agostiniana do Mal

Seria de se esperar que Agostinho professasse uma concepção negativa ou irrealista do mal, vendo-o como mera ausência ou insuficiência do Bem, e não como realidade em si – tanto em função de sua pronunciada verve neoplatônica, quando em virtude de sua rejeição categórica do dualismo ontológico maniqueu e sua defesa da co-eternidade e co-valência do Bem e do Mal.


Numa tal perspectiva, a explicação do mal cometido pelo homem (o pecado), talvez se deixasse formular nos termos de algum determinismo – pelo jugo das paixões, da natureza, da cidade, do demônio, ou de algum outro fator coercitivo "externo".


No entanto, a sua experiência de vida, sobretudo na juventude, a consciência da vontade que se sente livre, que se julga delituosa, mas que se compraz no ato que a razão censura – tudo isto o leva a pôr o problema do mal em outras bases, realçando a liberdade do arbítrio humano, ainda que no quesito estrito da responsabilidade moral e da positividade da ação humana, exigindo uma solução que dê conta desta signifitcativa aporia.


Como bom cristão e bom platônico, Agostinho considerava Deus como a suma realidade e verdade suprema (versão cristã da divina Idéia do Bem). Assim, os demais seres participariam imperfeitamente do ser (mas não de Deus, ressalte-se), uma vez que são distintos do Ser Supremo: eles seriam ontologicamente não-bons, incapazes da bondade absoluta, de modo que algum mal decorre necessariamente de seu ser e agir.


Apesar da concordância inicial de tal discurso com o ideário cristão católico, eis que a total assimilação do neoplatonismo à teologia católica logo descortinou um panorama penumbroso. Afinal, a divinização da realidade transcendente e a admissão da impossibilidade do agir perfeito na esfera da finitude acarretam, juntos, uma certa isenção de responsabilidade ao ente criado, com relação ao mal dele emanável. Ora, é do Sumo Ser que deve vir todo o Bem, inclusive aquele que pe modestamente encetável por Suas criaturas.


Ademais, inversamente, haveria uma parcela de mal intrínseco ao ente, sendo, pois, proporcionalmente desculpável o pecado cometido por este, de forma que, a princípio, somente o mal que exorbitasse um tal limite intrínseco é que deveria ser imputado ao ente que o deu origem, e como tal castigado.


No entanto, eis que o Bispo de Hipona percebeu, desde sempre, uma certa alteridade irredutível, uma diferença e distinção entre a sua vontade humana e a divina, como ele demonstrava na sua sincera e curiosa prece juveniel: "Dai-me a castidade e a pureza, mas não mas deis agora". Ele gostava positiva e efetivamente de tudo aquilo que era imperfeição e finitude do ser criado – a sensação material, o instinto animal, o prazer natural, a glória intelectual, o orgulho espiritual.


Por isto, a sua vontade haveria de ser compreendidade como realmente livre, para dar conta de toda esta complexa vida interior (e de sua manifesta dissonância com a Vontade divina): esta interioridade não era a carência de uma divindade, mas a plenitude de uma humanidade.


Além disso, só uma tal duplicidade ontológica explicaria o "chamado", enquanto convocação de um Deus absolutamente outro que não ele mesmo, ao qual ele poderia aceitar ou não, em sua graça ou dom.


Porém, o equacionamento da questão requeria enorme cautela, para que não se incorresse no extremo oposto de afirmar a plenitude ontológica do mal, a sua oponibilidade absoluta ao Bem. Isto equivaleria a recair no maniqueísmo, o qual também isenta o homem da responsabilidade moral, na medida que atribui os seus atos a uma fonte absoluta e transcendente – só que, no seu caso, a um princípio mau.


Deste modo, Agostinho se viu impelido a buscar uma terceira via. Para tanto, viu na vontade humana a causa do pecado, e na Vontade divina a causa do castigo. Deus, como tal, é o Bem e só deseja o Bem. Os entes finitos, por sua vez são bens, mas inferiores a Deus, infinitamente. Não são absolutos como o Criador, mas também não são irrealidades, pois que vieram Dele.


Nesta via, a única a conciliar as duas vontades positivamente, o mal foi considerado desarmonia local, também positiva, mas finita, da criatura em face do todo da Criação. No caso da vontade humana, que é boa em si, como toda a Criação, a maldade está na perversão, isto é, na sua oposição Todo (p.ex., comer por gula, ou praticar sexo por luxúria, sem os fins respectivos de nutrição e procriação). Isto é exemplificado na própria prece juvenil agostiniana: a vontade intrinsecamente boa (Dai-me a pureza), mas dissonante (não agora).


Com este procedimento argumentativo, evitam-se dois extremos: o da liberdade e o do determinismo absolutos, sem entregar o homem bem ao Bem, nem ao Mal. E nem (unicamente) a si mesmo.

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