Meditação (Heidegger) 4. O que é, afinal, a meditação ontológica?


Toda investigação que pretenda se mover no elemento próprio da ontologia necessita da cautela de evitar os descaminhos que a conduzam para os demais modos de pensar o ser; e isto não em razão de uma suposta superioridade beatífica de um tal saber ou de um tal pensar ontológicos, de maneira que os demais modos se exibissem, em face da ontologia, como quedas ou fracassos em relação à sua suposta pedra filosofal.


Não é esse, efetivamente, o caso. Eles também são modos legítimos de pensar o ser, mas cada qual vocacionado a cumprir um papel específico neste coro polifônico que perfaz cada 'dicção' do ser; a cautela contra o descaminho percorre esta malha viária em todas as direções, na mão e na contramão.



E deve ser mesmo assim, pois, sempre que a atenção vigilante fraquejar, tão logo se estará deslisando acriticamente entre os diversos modos de pensar o ser, numa miscelânea anódina que é um pouco de tudo e não é nada: nem ontologia, nem filosofia em geral, nem ciência, nem etc...


A cautela necessária para garantir a aproximação pensante em face disto que Heidegger chamou de "meditação" está firmada nos três passos seguidos até aqui:


a) a caracteriazação indicativa mostrou o meditar como um salto para a unicidade prévia do ser  (Ver);

b) a análise diferencial permitiu exibir as proximidades e afastamentos da meditação para com outros pensares direta ou transversalmente ontológicos e com os não-ontológicos – a ontologia negativa, a metafísica, o senso comum, os demais ramos da filosofia e as ciências (Ver);

c) por fim, a aproximação fenomenológica tornou um pouco mais perceptível o lugar possível do encontro entre a reflexão e a meditação ontológicas, bem como pontuou algo sobre as condições para que um tal encontro aconteça (Ver).


Com tudo isto, torna-se possível ensaiar uma resposta à questão: o que é a meditação ontológica? Ouçamos o próprio Heidegger: "É só vindo de muito longe a partir do início da história do seer, livre de toda a historiologia, que o pensar consegue preparar a prontidão para a fundação de uma decisão" (p. 17).



Mais adiante, ele acrescenta o "objeto" da tal decisão; este, por ora, não é necessário para a elucidação do problema, uma vez que se trata de um objeto epocal, algo que cada novo período da história do seer oferece ao pensar para que este medite originariamente. Importa, antes de tudo, desdobrar os elementos que perfazem este específico modo de pensar.


No entanto, observe-se que a sentença heideggeriana não apresenta um conceito do meditar (não importando qual seja a noção de "conceito" que se tenha), mas um juízo sobre o mesmo, uma afirmação a respeito dele. Em tal juízo, é apresentada uma condição (vir de longe, do início da história do seer) para que o pensar atinja a realização de algo (a preparação da prontidão para a fundação da decisão).


Dispensaremos, por ora, a análise da condição. A condição é essencial para o irromper da coisa, mas não é constitutiva dela, como o cano não é a fonte nem a água que dela traz: o cano é condição para que a água venha da fonte para a torneira.


A condição só pode ser inteligida como condição quando se sabe o que é a coisa mesma: veja-se o exemplo de Kant, que, ao decidir que o "faktum da ciência" consistia em alcançar "juízos sintéticos a priori" válidos universal e objetivamente, passou a indagar quais eram as "condições de possibilidade" de tais juízos que formavam (a seu ver) o conhecimento científico, para saber se a metafísica era também 'possível' a partir de tais condições.


Aliás, já se apontou acima o valor da análise condicional, no estudo da caracterização indicativa do que a meditação não é; ela permitiu iniciar a investigação sobre essa tal meditação, mas ainda não era a investigação em si mesma.


A segunda parte daquele juízo contém o que nos interessa, a saber, o "condicionado". A lógica mais trivial nos ensina que, quando ele se verifica, a condição foi satisfeita. Pois bem: em que consiste a "preparação da prontidão para a fundação de uma decisão?".


A princípio, Heidegger a postula como uma espécie de realização a ser atingida pela meditação. Algum investigador mais atento poderá antepor uma questão: mas será que esta realização do pensar meditativo não é outra coisa que não o meditar "ele mesmo"? Afinal, diz-se comumente, o carvalho é a realização da bolota, mas não é a bolota "mesma".



Porém, pensar desta maneira já corresponde ao início de uma "entificação" da meditação, algo que poderíamos chamar de uma "micro-metafísica" do meditar. Meditar é aquilo que há na bolota do início da história do seer, e que ainda há no carvalho da decisão fundada e prontamente preparada. Ou melhor: o meditar é a vida contínua do pensar que liga, através de novas bolotas epocais, os carvalhos que floresceram na epopéia do pensamento.



Esta ressalva não implica a condenação sumária de toda e qualquer metafísica do pensar, ou seja, toda e qualquer teoria metafísica deste ente chamado pensamento. Ela é importante, e como o é, nestes tempos tão carentes de pensamento: mas, no nosso caso, ainda se está no terreno da ontologia, que não pensa as relações e transições entre os entes, o tornar-se outro (ou sua negação, o não-tornar-se) da coisa investigada; ao contrário, ela visa aquilo que permanece o mesmo, o ser que se iluminou nesta compreensão.



Obviamente, esta compreensão pode até tornar-se metafisicamente mais clara e distinta (Descartes), fundamentada criticamente (Kant), desenvolvida em sua verdade (Hegel) ou des-invertida (Nietzsche), mas, desde sempre, era e foi o que há de ser.


Mas, o que é afinal, a meditação? Heidegger disse, certa vez, que a pergunta pelo "quid est" é a pergunta pela quididade, pela essência metafisicamente considerada. O pensamento metafísico facilmente ajuntaria os elementos aqui obtidos como "determinações" de uma definição, e diria: meditação é um salto para a unicidade prévia do ser que, vindo de longe, do início da história do seer, prepara a prontidão para a fundação de uma decisão.


E o mais interessante é que, se isto é metafisicamente falso, é ontologicamente verdadeiro. É verdadeiro no sentido de que não define encapsulando a meditação numa série de elementos distintivos, ao velho modo aristotélico do "gênero próximo e diferença específica", mas apresenta uma série de elementos que integram (mas não esgotam) o panorama desta coisa que, "se ninguém me pergunta, eu sei; mas, se alguém me pergunta, eu já não sei mais".


Meditar é como que ouvir o ente que confessa Ser, mas que, se indagado metodicamente (ou seja, sob tortura) para reduzir esta eterna e silenciosa confissão a um termo de depoimento, comete falsidade ontológica.




(Ver)

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