Toda
investigação que pretenda se mover no elemento próprio da
ontologia necessita da cautela de evitar os descaminhos que a
conduzam para os demais modos de pensar o ser; e isto não em razão
de uma suposta superioridade beatífica de um tal saber ou de um tal
pensar ontológicos, de maneira que os demais modos se exibissem, em face da
ontologia, como quedas ou fracassos em relação à sua suposta pedra
filosofal.
Não é esse, efetivamente, o caso.
Eles também são modos legítimos de pensar o ser, mas cada qual
vocacionado a cumprir um papel específico neste coro
polifônico que perfaz cada 'dicção' do ser; a cautela contra o
descaminho percorre esta malha viária em todas as direções, na mão
e na contramão.
E deve ser mesmo assim, pois,
sempre que a atenção vigilante fraquejar, tão logo se estará
deslisando acriticamente entre os diversos modos de pensar o ser,
numa miscelânea anódina que é um pouco de tudo e não é nada: nem
ontologia, nem filosofia em geral, nem ciência, nem etc...
A cautela necessária para garantir
a aproximação pensante em face disto que Heidegger chamou de
"meditação" está firmada nos três passos seguidos até
aqui:
a) a caracteriazação indicativa
mostrou o meditar como um salto para a unicidade prévia do ser (Ver);
b) a análise diferencial permitiu
exibir as proximidades e afastamentos da meditação para com outros
pensares direta ou transversalmente ontológicos e com os
não-ontológicos – a ontologia negativa, a metafísica, o senso
comum, os demais ramos da filosofia e as ciências (Ver);
c) por fim, a aproximação
fenomenológica tornou um pouco mais perceptível o lugar possível
do encontro entre a reflexão e a meditação ontológicas, bem como
pontuou algo sobre as condições para que um tal encontro aconteça (Ver).
Com tudo isto, torna-se possível
ensaiar uma resposta à questão: o que é a meditação ontológica?
Ouçamos o próprio Heidegger: "É só vindo de muito longe a
partir do início da história do seer, livre de toda a
historiologia, que o pensar consegue
preparar a prontidão para a fundação de uma decisão" (p.
17).
Mais
adiante, ele acrescenta o "objeto" da tal decisão; este,
por ora, não é necessário para a elucidação do problema, uma vez
que se trata de um objeto epocal, algo que cada novo período da
história do seer
oferece ao pensar para que este medite originariamente. Importa,
antes de tudo, desdobrar os elementos que perfazem este específico
modo de pensar.
No
entanto, observe-se que a sentença heideggeriana não apresenta um
conceito do meditar
(não importando qual seja a noção de "conceito" que se
tenha), mas um juízo
sobre o mesmo, uma
afirmação a respeito dele. Em tal juízo, é apresentada uma
condição (vir de longe, do início da história do seer) para que o
pensar atinja a realização de algo (a preparação da prontidão
para a fundação da decisão).
Dispensaremos, por ora, a análise
da condição. A condição é essencial para o irromper da coisa,
mas não é constitutiva dela, como o cano não é a fonte nem a água
que dela traz: o cano é condição para que a água venha da fonte
para a torneira.
A
condição só pode ser inteligida como condição quando se sabe o
que é a coisa mesma: veja-se o exemplo de Kant, que, ao decidir que
o "faktum da
ciência" consistia em alcançar "juízos sintéticos a
priori" válidos universal e objetivamente, passou a indagar
quais eram as "condições de possibilidade" de tais juízos
que formavam (a seu ver) o conhecimento científico, para saber se a
metafísica era também 'possível' a partir de tais condições.
Aliás,
já se apontou acima o valor da análise condicional, no estudo da
caracterização indicativa do que a meditação não é;
ela permitiu iniciar a investigação sobre essa tal meditação, mas
ainda não era a investigação em si mesma.
A segunda parte daquele juízo
contém o que nos interessa, a saber, o "condicionado". A
lógica mais trivial nos ensina que, quando ele se verifica, a
condição foi satisfeita. Pois bem: em que consiste a "preparação
da prontidão para a fundação de uma decisão?".
A
princípio, Heidegger a postula como uma espécie de realização
a ser atingida pela meditação. Algum investigador mais atento
poderá antepor uma questão: mas será que esta realização
do pensar meditativo não é
outra coisa que não o meditar "ele mesmo"? Afinal, diz-se
comumente, o carvalho é a realização da bolota, mas não é a
bolota "mesma".
Porém,
pensar desta maneira já corresponde ao início de uma "entificação"
da meditação, algo que poderíamos chamar de uma "micro-metafísica"
do meditar. Meditar é aquilo que há na bolota do início da
história do seer, e
que ainda há no carvalho da decisão fundada e prontamente
preparada. Ou melhor: o meditar é a vida contínua do pensar que
liga, através de novas bolotas epocais, os carvalhos que floresceram
na epopéia do pensamento.
Esta ressalva não implica a
condenação sumária de toda e qualquer metafísica do pensar, ou seja, toda e qualquer teoria metafísica deste ente chamado pensamento. Ela é
importante, e como o é, nestes tempos tão carentes de pensamento:
mas, no nosso caso, ainda se está no terreno da ontologia, que não
pensa as relações e transições entre os entes, o tornar-se outro
(ou sua negação, o não-tornar-se) da coisa investigada; ao
contrário, ela visa aquilo que permanece o mesmo, o ser que se
iluminou nesta compreensão.
Obviamente, esta compreensão pode
até tornar-se metafisicamente mais clara e distinta (Descartes),
fundamentada criticamente (Kant), desenvolvida em sua verdade (Hegel)
ou des-invertida (Nietzsche), mas, desde sempre, era e foi o que há
de ser.
Mas,
o que é afinal, a meditação? Heidegger disse, certa vez, que a
pergunta pelo "quid est"
é a pergunta pela quididade, pela essência metafisicamente
considerada. O pensamento metafísico facilmente ajuntaria os
elementos aqui obtidos como "determinações" de uma
definição, e diria: meditação é um salto para a unicidade prévia
do ser que, vindo de longe, do início da história do seer, prepara
a prontidão para a fundação de uma decisão.
E
o mais interessante é que, se isto é metafisicamente falso, é
ontologicamente verdadeiro.
É verdadeiro no sentido de que não define encapsulando a meditação
numa série de elementos distintivos, ao velho modo aristotélico do "gênero
próximo e diferença específica", mas apresenta uma série de
elementos que integram (mas não esgotam) o panorama desta coisa que,
"se ninguém me pergunta, eu sei; mas, se alguém me pergunta,
eu já não sei mais".
Meditar
é como que ouvir o ente que confessa Ser,
mas que, se indagado metodicamente (ou seja, sob tortura) para
reduzir esta eterna e silenciosa confissão a um termo de depoimento,
comete falsidade ontológica.
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