Meditação (Heidegger) - 1. A meditação enquanto salto para a unicidade prévia do "seer"

 
1 – A meditação ontológica enquanto salto para a unicidade prévia do seer


Heidegger inicia a reflexão intitulada “Salto prévio para a unicidade do seer”icom uma reflexão sobre a meditação. Somente esta, enquanto um pensar que “vem de muito longe, do início da história do seerii”, é capaz de preparar o que ele chamou de “prontidão para a fundação de uma decisão”.



Que locus especial é este, do qual o tal do meditar provém, e que decisão mais futura é esta para a qual ele aponta? São questões que se impõem com principalidade, antes que se examine e se opine se o nosso filósofo cumpre, de fato, as promessas que efetua.



Porém, antes de averiguá-las, importa lançar os olhos sobre o tal do meditar “em si mesmo”: em que ele consiste, e como se assegurar de que estamos em sua posse?



Uma pista para tal desvendamento se encontra no título deste texto. Que coisa é esta, a “unicidade prévia do seer”, e em que consiste este salto?




Um olhar mais atento mostrará, de saída, que unicidade é unidade, mas não qualquer unidade. Em termos heideggerianos, diga-se que não se trata de uma unidade metafísica, mas ontológica. Por unidade metafísica entenda-se a afirmação da unidade ôntica do real, como nas fórmulas panteístas que consideram cada grama de fenômeno ou de existência, cada ente e cada modo como integrantes de um Ser-Uno enquanto ente supremo.



A unicidade do ser, em contrapartida, não significa uma unidade orgânica a coarctar a totalidade do ente, mas uma unidade de sentido que perfaz a abertura compreensiva na qual ela se dá, em cada contexto epocal. Ela se refere à possibilidade e à vigência de uma compreensão ontológica unificada do ser do ente (e, consequentemente, do ente em seu ser), na qual cada ente como tal, sem deixar de ser o que é, sem ser violentado a utilizar uma armadura representacional extrínseca, passa, no entanto, a ser vislumbrado através da clareira (Lichtung) ensejada pelo desvelamento do ser (Aletheia), em meio à instauração da primazia de um ente referencial, mas não fundamental.



Para clarificar o que foi dito, dou um exemplo. A analítica existencial exercitada em Ser e Tempo compreende o ser do ente, bem como os diversos entes como tais, a partir de um ente ontologicamente "especial": o ser-aí (Dasein). A especialidade deste, contudo, não consiste num privilégio ôntico, como rei da Criação, imagem de Deus, ou coisa do tipo. Inda que seja este o caso, uma tal primazia teria caráter ôntico, referindo-se à comparação dos entes entre si.





A referencialidade ontológica, todavia, diz respeito ao fato de que a interrogação dirigida a um tal ente tem, em suas mãos, uma possibilidade mais originária de compreender o ser. Ou seja, o Dasein é o ente que pode desvelar a tal unicidade do seer.





Assim, o Dasein é o ente referencial a partir do qual, para Heidegger, o ser é “compreendido” como "cuidado", sob o horizonte de sentido da “temporalidade”, bem como os diversos entes são entendidos como outros entes com o modo de ser do Dasein (ser-aí), ou como entes “ao alcance dos olhos, passíveis de manuseio” (Vorhandenheit), "ao alcance das mãos ou em efetivo manuseio" (Zuhandenheit), etc.


Porém, identificar a presença de uma interpretação metafísica unitária do ser em um dado percurso pensante não implica, necessariamente, afirmar a ausência, nele, de uma compreensão ontológica unificada. As duas formas de pensar são distintas, mas não intrinsecamente antagônicas.


Obviamente, a compreensão unificada esboçada em Ser e Tempo é incompatível com praticamente todas as interpretações metafísicas anteriores, mas não com toda e qualquer interpretação metafísica. Do mesmo modo, em quase toda metafísica, havia uma compreensão ontológica subjacente. A ressalva a ser feita consiste em que a mesma era efetuada a partir da identificação, digamos, “metonímica”, do ser com um ente fundamental (a physis, o logos, o nous, o theos, o eidos, a hyle, etc). Dito de outra forma, talvez se possa dizer que a compreensão metafísica da unidade do ser floresce sempre que o ente referencial for um ente fundamental.


No entanto, uma distinção parece se estabelecer aí, entre as formas de compreensão ontológica unificadora. O pensamento que se instaura numa compreensão ontológica originária possui os recursos para escapar à queda na identificação metonímica do ser com o ente referencial, uma vez que este não será um ente fundamental. O pensamento que se esforça em concertar um arranjo ontológico a posteriori para o ser normalmente o faz entulhando os demais entes com predicações e valorações atribuídas ao ente fundamental (vendo o mundo com óculos de uma certa cor), e interpretando esta “cor” ontoaxiológica sobreposta ao ente como o sentido epocal do desvelamento do ser, dotando-o, artificialmente, de uma certa “unidade cromática”.


Ora, é justamente esta compreensão ontológica originária que parece constituir apanágio diferenciador do pensar meditativo. A ele é que parece estar atribuída a tarefa de “saltar para a unicidade prévia do ser”. Assim, mesmo sem penetrarmos mais profundamente na caracterização de um tal pensamento, já podemos adiantar o seguinte: ele salta da metafísica fundamental para a ontologia “referencial”, dispensando-se de elaborar uma prévia e exauriente “cartografia do ente”, que talvez nem possível jamais seja...




Porém, uma pergunta se impõe: por que Heidegger denomina esta forma de pensar com a indicação metafórica do “salto”? De que descontinuidade ou ruptura se trata aí? Por que ele não considera este pensar originário, como talvez fosse de se esperar, como uma atitude imediata, “natural”, espontânea do ser-aí?


A justificativa para tal opção qualificadora reside no fato de que o ser-aí, de início e na maioria das vezes se move em meio a uma pré-compreensão derivada do ser, a qual consiste numa repercussão da compreensão do ente chamado 'mundo'. Em suma, ele não se move imediata, natural ou espontaneamente em meio a uma compreensão originária, genuína do ser. Esta compreensão ôntica preliminar (do mundo) é ontológico-metafísica, decerto; mas é mais metafísica que ontológica, vez que a compreensão do ser nela é quase que implícita e rudimentar, sendo herdada irreflexivamente da tradição.


Temos aí as quatro indicações necessárias para assegurarmos a possibilidade da tal meditação:


a) em primeiro lugar, trata-se de um pensar sobre o ser, o que a carateriza como uma meditação ontológica;

b) além disso, ela não pensa o ser em sua unidade (ou falta dela), mas em sua unicidade, considerando-o compreensivamente a partir de um ente apenas “referencial” ao invés de um ente fundamental (ou fundamental-e-referencial);

c) ademais, esta compreensão ontológica é prévia ao ulterior (e necessário, reconheça-se) esquadrinhamento metafísico dos entes em suas regiões ônticas;

d) finalmente, ela se efetua mediante um “salto”, uma decisão hermenêutica genuína, e não como conclusão de um processus racional-demonstrativo ou de uma compreensão transversal, indireta.


Com tais elementos, duas tarefas agora se impõem. A primeira delas consiste em determinar as características constitutivas da meditação, uma vez que as indicações obtidas possuem caráter diferenciador e não conceptual. Uma vez na posse desse conceito, torna-se possível indagar pela proveniência e pelo destino (pela origem e pelo futuro) do pensar meditativo, tal como anunciado pelo filósofo da Floresta Negra.

iHEIDEGGER, Martin. Meditação. Trad. Marco Antônio Casanova. Petrópolis: Vozes, 2010, p. 17.
iiA palavra seer foi assim grafada pelo tradutor, para se referir ao termo alemão arcaico seyn, que Heidegger utiliza para evocar uma certa originariedade pré-metafísica, em contraposição ao termo alemão vigente sein, que é traduzido pelo vocábulo contemporâneo ser, e que alude ao ser entificado ao modo de fundamento, ente supremo. A diferença entre ambas é explicada pelo tradutor na Introdução da obra supra-citada.

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