As
indicações negativas, formais, a respeito do pensamento meditativo
como tal (caráter ontológico, unicidade interpretativa, compreensão
originária e salto), tais como analisadas no artigo precedente, não bastam para dizer-lhe a sua contextura
intrínseca (aliás, 'intrínseco' aqui talvez constitua quase que
uma metáfora, ainda por cima inexata).
Contudo, tais indicações cumprem o importante
papel de dizer algo sobre aquilo que a meditação ontológica não
é, desbastando-a de
certas representações obscurecedoras (e falseadoras).
Porém, para
além desta função profilática, a caracterização indicativa tem
o mérito de possibilitar a fixação de um quadro de relações
entre a meditação e outras formas ou modos de pensar o ser..
Em primeiro lugar, a meditação é um pensar de
envergadura ontológica, ou seja, ela se dirige para o ser como tal,
e não para o ente. Isto já a diferencia dos assim chamados ramos ou
disciplinas da filosofia (lógica, ética, filosofia política, etc),
na medida em que estes pensam certos entes ou regiões ônticas
particulares.
Do mesmo modo, distingue-se das ciências, que
constituem o próximo passo da vinculação prévia de certos métodos
e objetos para o pensamento investigador.
Num primeiro momento, portanto, a meditação
se inclui entre os modos ontológicos de pensar, em contraste com os
modos ônticos do pensamento, que pensam o ser no pretérito, isto é,
o tomam por já-pensado.
No quadro dos pensares que vocalizam o ser, a
meditação se distingue, em segundo lugar, por interpelar o ser a
partir de um ente referencial, e não de um ente fundamental, e por
visar-lhe a unicidade compreensiva em vez da unidade explicativa como
tal. Nisto, ela se afasta da metafísica, que sempre pensa o ser a
partir de um fundamentum inconcussum, de um ente supremo, com o qual
o confunde, via de regra.
A metafísica possui, inegavelmente,
tessitura ontológica. Mas esta é incipiente e geralmente
repercussiva; é um julgamento da totalidade do ente a partir do
cânone ôntico fornecido por um ente em especial, um ente fundamental. Logo, a meditação
se inclui no campo do pensamento ontológico propriamente dito,
enquanto que a metafísica pode ser dita pensamento ontológico sob o
modo da impropriedade.
Em terceiro lugar, esta meditação ontológica
se deixa apreender como uma compreensão originária da unicidade do
ser. Com isto, se sinaliza uma diferença em face de toda reflexão
ontológica, a qual se exibe como uma mirada ontológica sobre um
pensamento outro não-ontológico. A reflexão ontológica constitui
uma espécie de “ontologia negativa”, tal como a que Heidegger
empreende em muitos momentos da sua famosa virada ontológica
(Kehre), mas que já se prelineia naquilo que, em Ser e Tempo, foi
denominado de “destruição da história da ontologia”.
Uma outra forma (dessa vez híbrida) de
pensamento ontológico não-originário se encontra na reflexão
ôntico-ontológica, com a qual cada nova compreensão originária
(ontológica) aborda os pensares ônticos na busca por reavaliar os
seus marcos ontológicos em vista dos elementos descortinados em sua
investigação.
Finalmente, note-se que a meditação ontológica
originária salta para a unicidade do ser, ou seja, ingressa
bruscamente nela a partir de uma decisão, de modo que ela não se
move de imediato em meio a esta. O senso comum, via de regra,
compreende (implicitamente) a unicidade enquanto explica a unidade; o bom senso, este sim, se move
espontaneamente em meio a uma pré-compreensão ontológica: não
infundada, é verdade, mas também não consolidada.
O senso comum é filho
da metafísica de ontem. Em alguns aspectos, ele a definha
relativamente, ora libertando-se de excessos hermenêuticos, ora
degradando virtualidades pensantes dela. Em ambos os casos, porém,
ele consegue pensar em meio a uma compreensão ontológica
penumbrosa, semi-luminescente, ambígua, mas presente. Todavia, é uma
originariedade passiva, é um estar-em-meio-à-origem não-originante,
incapaz de avançar para dentro dela, de modo a suscitar uma nova
irrupção epocal da compreensão originária. Está na origem, mas a
se afastar dela. Ele até a enseja e colabora, em alguns casos; mas o
salto para a nova apreensão da origem há que ser dada pela genuína
meditação.
Com o que foi dito, portanto, pode-se traçar breves contrapontos entre a meditação ontológica e os demais modos de pensar o ser:
a) meditação ontológica versus outros 'ramos' da filosofia: aquela pensa o ser, é ontológica, enquanto que estes outros pensam seus entes fundamentais (o belo, a verdade, a justiça, a vida, etc), a partir de um solo ontológico implícito, ou a partir da assunção explícita dos resultados de uma ontologia prévia. Elas se comportam, em parte, como ontologias especiais ou regionais, como micro-ontologias; mas também possuem uma parte não-ontológica.
b) meditação ontológica e ciências particulares: o afastamento aqui aumenta de um passo em relação ao precedente, na medida em que as ciências partem da pressuposição ontológica dos seus objetos, no que dependem (mesmo que inconscientemente) dos ramos filosóficos respectivos: por exemplo, há uma ontologia subjacente na abordagem teórica do biólogo que busca critérios experimentais para definir onde termina o fenômeno químico-orgânico, e onde começa o fenômeno biológico. As ciências são, em parte, ontologias especiais ou regionais aplicadas.
c) meditação ontológica e metafísica: ambas pensam o ser, mas aquela a partir de um ente referencial, e esta a partir de um ente fundamental. Aquela mira a unicidade ontológica, a unidade de sentido do ser, enquanto que esta pergunta pela unidade ôntica, pela unificação totalizante do ente.
d) meditação ontológica e reflexão ontológica: ambas atingem o elemento da ontologia. Mas só a primeira se move em meio a ele: ela é puramente ontológica, enquanto que a reflexão é ôntico-ontológica. A reflexão é uma espécie de ontologia negativa, que desbasta camadas seculares de afirmações dogmáticas estratificadas, para que a outra, enquanto autêntica ontologia positiva, permita vir-à-luz novas facetas da sempre renovável compreensão do ser.
e) meditação ontológica e senso comum: este também se move em meio a uma compreensão do ser, mas mediana, mas indireta, mas legada pela tradição, originada e não originária, enquanto a meditação efetivamente salta para uma compreensão originária, assume a possibilidade e o encargo de elaborar a sua compreensão.
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