A diferenciação entre a meditação
ontológica e outros modos de pensar o ser, ontológicos (ontologia
negativa, metafísica, senso comum) ou não ontológicos (ramos da
filosofia e ciências particulares) libera o caminho para um encontro
genuíno com aquele pensar em sua essência originária (Ver); mas ainda
não garante que um tal encontrar aconteça.
Aliás, as indicações negativas ou formais (Ver)
constituem espécies de conditio sine qua non,
sem as quais o encontro ontológico, enquanto recpiproca
apresentação, é
obstruído e substituído por um mero intercâmbio de representações,
como dois indivíduos que, sentados frente a frente, ligassem os seus
tablets para poderem
entabular uma (pseudo)conversa.
A
caracterização distintiva, portanto, visa realmente desligar todos
os aparelhos e acréscimos supérfluos que pretendam canalizar a
apreensão deste pensar meditativo numa forma que, embora não seja
falsa ou irreal, é, contudo, derivada.
Entretanto,
diferir e relacionar ainda não perfazem o dizer da coisa mesma. Eles
não são, portanto, condições per quam, pelas
quais o objeto tematizado – neste caso, o pensar meditativo – é
desvendado para uma apreensão direta.
Por
isto, há que se acrescentar outros elementos que, ao lado do
importante papel preparatório da caracterização indicativa, possam
ensejar efetivamente o tal encontro que a mesma tornou possível. Ou
seja, mais do que desligar os tablets da
pré-compreensão representativa e da compreensão ôntica, é
preciso que as partes deste encontro (o investigador e a coisa
investigada) estejam reunidos num mesmo lugar.
Porém,
somente um dentre eles possui realmente o modo do ser-aí (Dasein), ou seja,
do ente que pode realmente participar de um encontro (autêntico ou
não); o outro é um modus cogitandi (modo
de pensar), que pode apenas participar passivamente deste encontro,
sendo encontrado (ou não) por aquele que o procura.
Um
tal esclarecimento pode até parecer desnecessário como mero
academicismo; mas coloque-se, p.ex., em lugar de uma ontologia
referenciada a partir do ser-aí,
uma metafísica do espírito enquanto ente
fundamental-e-referencial, e
eis que a coisa procurada também será passível de vir ao encontro.
Para
compreender este exemplo, recorramos a Hegel. Ele diz, de maneira
grandiloquente, que o pensar que conhece o ente chamado Absoluto não é
um instrumento (um tablet, diremos
no nosso exemplo metafórico) que traz o Absoluto à nossa presença
sem que, neste, nada se altere, uma vez que ele, o Absoluto,
"zombaria desta astúcia, que o trata como se não quisesse ou
não pudesse estar em nosso conhecimento tal como ele é em si
mesmo".
Em
suma: neste caso, tanto o espírito pensante quanto
a realidade espiritual pensável
são passíveis de vir ao encontro.
Mas
o ser não é o ente Absoluto – mesmo que um tal ente
exista. Ele não encontra nem é
encontrado. Heidegger, aliás, em muitas ocasiões, como em Tempo
e Ser, chega a ilustrar a
relação do ser com o pensar ontológico, dizendo que o Ser "dá-se",
para assinalar esta diferença.
Porém,
note-se que este "dar a si mesmo" não é nem um doar
ativo, nem um ser doado passivamente: é uma expressão
paradoxal que sinaliza exatamente tanto a impossibilidade de um
discurso que simplesmente "doe" o ser, quanto um mero
receber passivo do mesmo.
Há,
pois, uma certa ambivalência ineliminável em toda fixação de
sentido, em toda dicção do ser,
ontológica ou não, originária ou derivada, ainda que esta se
minimalize ou se obscureça nos setores do pensar e agir maximamente
convencionalizados (p.ex.:"dinheiro é uma coisa que apenas se
recebe ou dá, e nada mais").
Do
mesmo modo, o pensar medidativo do ser matiza-se com esta
ambivalência do ser. A rigor, quando se fala ser
na ontologia heideggeriana, se está a falar justamente da
compreensão ontológica que ilumina o pensar. O ser 'se dá'
justamente quando um pensar meditativo autêntico está acontecendo.
Isto,
contudo, não quer dizer que haja 'ocasiões' nas quais o ser não se
dê, como se tudo padecesse à deriva nos intervalos entre eventuais
aparições salvíficas de um herói chamado ser. Em razão
precisamente da tal da ambivalência ineliminável, eis que, mesmo
quando o ser se vela, ele está 'se dando' à compreensão (mesmo o
super-herói invisível, que nunca sai do velamento visual, dá-se
como presença não-imagética).
Nunca
haverá, portanto, um pensar totalmente desprovido de vetor
ontológico. Todo pensamento possui, em seu interior, o vestígio da
auto-doação do ser, da compreensão ontológica que o instaura.
Desvelá-lo não significa fazer jorrar uma luz extraterrena sob o
fundo abscôndito de uma gruta, mas perceber que aquele 'escuro' era
relativo aos olhos acostumados com o grau de claridade ontológica da
planície em sua mediania.
Este
alento, no entanto, é também desalento: o ser nunca se dará num
total desvelamento. Há algo de velamento mesmo na iluminação mais
cintilante – aliás, enfrentar a luz de um desvelar de frente
implica o total ofuscamento, quando não a cegueira para aquele
âmbito de desvelamento.
Ademais,
para utilizar outra imagem, há sempre o que escapa ao espectro
visível daquele pensar ao qual uma certa face do ser se ilumina –
sim, na ontologia também há o infra-vermelho e o ultravioleta... O
pensar ontológico deve incorporar profundamente a humildade de saber
impossível a realização plena da meta eterna que a si mesmo
propõe. E não há jeito: toda vez que ele se julgar em posse de um
total desvelamento, eis que, neste momento, o ser que se dá estará,
sorrateiramente, sendo velado na forma (gestalt)
de um ente fundamental.
É justamente a partir desta
humildade primordial que o ser-aí, este ente referencial que possui
o privilégio de poder questionar ontologicamente o ente em seu ser,
poderá passar da investigação ontológica (que passeia pelos
diversos modos de pensar o ser, inclusive os não-ontológicos) para
a meditação propriamente dita. E esta passagem se dá tanto mais
plenamente quanto mais a ontologia negativa ali se insinuar com mais
robustez e apuro. É escavando a terra grossa da tradição
estratificada que o ser-aí que investiga poderá atingir o veio
dágua da ontologia genuína, da qual jorra ser.
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