Mito, História, Alegoria e Apologia no Evangelho – Primeira Consideração

Mito, História, Alegoria e Apologia no Evangelho – Primeira Consideração



O documento espiritual fundamental do Ocidente possui uma história e uma estrutura interna multifacetadas. Um sem-número de elementos heteróclitos entre si participam da sua composição, de modo que se impõe a questão de refletir acerca do ponto de apoio para a verificação das referências factuais dos quatro Evangelhos.



Esta questão se avoluma ainda mais quando se recorda que a Boa Nova é lida de maneiras diversas por diferentes sujeitos – como mensagem ética, como verdade revelada, como sabedoria de vida, como crítica religiosa, como nova religião, como mera ficção –, de maneira que igualmente numerosas serão as interpretações dadas ao acidentado processo de gênese dos evangelhos canônicos: proveniência divina, tradição oral registrada, autoria humana individual, reelaboração institucional deliberada, acaso historiográfico, etc.



Em face de um tal panorama, não se torna fácil avaliar a questão proposta no título deste texto. Como falar em mito para quem admite a verdade literal plena de todas as passagens do Evangelho? Como falar em História para quem nega a possibilidade física de acontecimentos incomuns como as curas excepcionais e outros fenômenos atribuídos a Jesus de Nazaré? Como falar em alegoria quando abundam interpretações literais das mensagens proféticas de Jesus a respeito dos últimos dias? Como falar em apologia no caso dos relatos brutalmente honestos de traições, capitulações, hesitações e humilhações cometidas ou sofridas pelos protagonistas da narrativa? Cada um destes elementos, quando indicados ou propostos, haverá de suscitar a reação oposicionista de partidários de doutrinas visceralmente opostas, do ateísmo programático à profissão de fé mais dogmática.



Um expediente metodológico interessante, neste particular, é convidar aos crentes e descrentes a efetuar uma reflexão comparativa prévia, tendente a identificar quais seriam os juízos que eles próprios profeririam em caso de uma outra doutrina não professada (no caso dos crentes), ou professada (no caso dos descrentes ou dos adeptos de uma outra). Assim, é interessante ao cristão religioso ponderar sobre quais episódios atribuídos a Jesus seriam por ele tidos por lendários ou míticos caso fossem creditados a outros personagens da história sagrada dos povos, como Krishna, Buda ou Zoroastro. Um outro princípio valioso, derivado do primeiro, consiste na apuração prévia da ocorrência de eventos típicos, encontrados na biografia de mais de um destes personagens.



Partamos de um exemplo: no caso da concepção transcendente e virginal, depara-se com um evento típico: outros personagens cruciais de sistemas religiosos tiveram suas origens vinculadas a eventos desta natureza. Obviamente, uma tal verificação não há de constituir, a priori, uma prova em desfavor da veracidade da ocorrência. Contudo, haverá de impor ao investigador da questão a elaboração de uma interpretação que:



a) conclua para veracidade de todas as histórias de concepções miraculosas, o que exigirá do mesmo a indicação das linhas fundamentais de uma ontologia na qual um tal fenômeno seja explicável, inda que minimamente e pelo recurso ao mistério ou ao divino;



b) conclua pela veracidade exclusiva referente ao seu contexto religioso, surgindo a tarefa de apontar as razões do surgimento de uma tal crença noutros povos;



c) conclua pela não-factualidade do evento, e elabore uma explicação alternativa;



Com o que foi dito, percebe-se que uma investigação histórica alicerçada por uma concepção de mundo diretamente favorável ou desfavorável à doutrina em tela não necessariamente haverá de incorrer em distorções da verdade fática (seja lá o que isto for, para além de um ideal científico). Em todo caso, correrá os mesmos riscos de toda pesquisa histórica, uma vez que todas elas estarão embasadas por uma ontologia da realidade (mesmo que seja a ontologia implícita e não-tematizada do senso comum popular ou científico). No limite, é possível até dar-se o caso de um estudioso adepto da religião em causa, que admita o caráter mítico ou ficcional do evento narrado, mas que considere providência divina o próprio fato da invenção coletiva espontânea ou pessoal intencional do evento.



A princípio, porém, é possível diagnosticar uma tendência: o estudioso descrente tenderá a interpretar como mito tudo o que é apresentado como história pelo crente, enquanto este tenderá a interpretar como história tudo o que aqueloutro entendeu como mito. Igual movimento se processa no com relação a alegoria e apologia: o descrente considerará como apologia intencional tudo o que aparece alegorizado no texto recepcionado, enquanto que o crente considerará como mensagem alegórica tudo o que o outro julgará não passar de apologia pura e simples.


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