A querela dos Universais

A querela dos universais, no medievo, é alcunha comum que congloba questões de diversos matizes – linguístico, lógico, gnosiológico, ontológico, inda que a consciência desta pluridimensionalidade não apareça com tal clareza àqueles que a enfrentaram.



Em linhas gerais, trata-se de saber se os nomes que designam coletividades ou gêneros indicam realidades existentes ou não.



Em termos atuais, isto equivale a indagar se tais termos ditos universais possuem um significado e\ou referente efetivos, ou seja, se está associado, a cada um deles, um conceito significado e\ou um ente referencial.



Em suma: trata-se de saber se nomes como "manada" ou "animal" designam idéias, entidades abstratas, realidades verdadeiras ou se são simples noções genéricas da linguagem.



A origem do problema, em si mesma, não é medieval. Aristóteles, ao discorrer sobre os sentidos de ser em sua (hoje denominada) Metafísica, identificou o katholou (universal) como um dos significados fundamentais, ao lado de gênero, substância, e verdadeiro.



Aristóteles se posicionou claramente de maneira contrária à afirmação da existência de entidades universais 'ao lado' ou 'para além' dos indivíduos ou entes concretos, como seria o caso das Idéias de Platão, enquanto paradigmas da realidade ontologicamente plenos e sediados numa espécies de locus especial, o topos ouranos (lugar celeste). O universal (por exemplo, animal ou homem) só ocorre juntamente com o indivíduo que se deixa classificar por ele.


Porém, se a questão não era nova, certamente o foram a sua reproposição a sua ascensão ao cerne dos reflexões, a sua centralidade em face das discussões intelectuais do mundo cristão, a partir de Boécio. Fora este quem inaugurou este longo debate medieval, a partir de sua meditação a respeito da Isagoge de Porfírio, obra que constitui uma espécie de introdução ao estudo do Organon aristotélico.



Embora o Organon constitua uma coletânea de tratados hoje classificáveis como lógico-linguísticos, ela incorpora certos princípios filosóficos comuns a todo o pensamento aristotélico (ainda que se postule uma evolução diferencial da filosofia de Aristóteles). Um destes elementos basilares é o chamado primado da substância, a qual, na Metafísica (1028a 12-15), assume o papel de significado fundamental do ser, enquanto os demais significados\sentidos a ela se refeririam como sua realidade primordial.



É justamente por esta razão que os universais não possuem, para Aristóteles, independência ontológica em face dos entes sensíveis, das substâncias individuais. Universais, gêneros e a noção de verdade seriam relativos a elas, predicáveis ou atribuíveis a elas.



Mas, qual seria a importância de distinções tais para o pensamento cristão? Ora, Boécio se situa, precisamente, num momento de transição entre o período patrístico, da primeira elaboração teológica da Igreja, e o período Escolástico, segundo momento da História intelectual da Igreja.


Tratava-se, essencialmente, de um período de renovação do pensamento teológico, marcado, sobretudo, por uma reação ao neoplatonismo, complexo conjunto de reinterpretações (pré-cristãs, cristãs e não-cristãs) do pensamento platônico. Este se alicerçava, justamente, na postulação da existência de realidades universais, de natureza inteligível, paralelas (ou transcendentes) às realidades individuais.


Obviamente, a caracterização de tais realidades universais variava enormemente. Entre os cristãos, por exemplo, havia a tendência de identificar Deus com a Idéia platônica do Bem, diferindo os pensadores quanto a admissão de outras Idéias como arquétipos da Criação (Gregório de Nissa), ou pela negação da existência de outra realidade universal que não fosse o Ser Supremo.



Esta segunda tese, aliás, é crucial para o entendimento da querela; afinal, além de universais, as Idéias, se existissem, seriam eternas, imutáveis e incorrptíveis, uma vez que se distinguiriam dos entes sensíveis, sujeitos à geração e à corrupção, de modo que, para além dos diversos cavalos concretos, haveria uma Idéia eterna do cavalo (ou da "cavalidade"), e assim por diante.



Por tudo isto, a tentativa de refundamentação da teologia católica, e de sua filosofia respectiva, a partir do panorama descortinado pelo aristotelismo, mostrava-se bastante promissora. Aristóteles não só negava que os inteligíveis possuíssem realidade independente e efetiva (em ato, na sua terminologia). Para ele, os universais constituiriam "propriedades essenciais" dos entes (a animalidade do homem), e as designou com a expressão kat' auto, que indica aquilo que uma coisa é "por si mesma", ou seja, essencialmente (como a 'quadrangularidade' do quadrado).



Isto posto, a essencialidade dos universais os distinguiria de outras propriedades, ditas acidentais ou "por participação" (kata symbebekos), que estão na coisa sem perfazerem a sua esseência (a albinidade de alguns homens), propriedades contingentes, que poderiam não estar ali sem descaracterizar aquele ente.



O pensamento medieval, pré-escolástico e escolástico, classificará estas duas abordagens – a platônica e a aristotélica, a afirmadora e a negadora dos universais – com diferentes termos. Ao universal ontologicamente pleno, independente da coisa, como o eidos platônico, eles designaram universal ante rem (anterior à coisa). Em compensação, ao katholou aristotélico intitularam de universal in re (na coisa).



Tomados assim tal como expostos pelos dois sábios gregos, os universais haveriam de ser ou transcendentes aos entes, ou imanentes a eles. Obviamente, houve tentativas de se pensar alternativas a isto, uma vez que a polarização extrema entre ambos criava uma significativa aporia ou dilema. Por um lado, havia o postulado gnoseológico realista, compartilhado por quase todas as correntes filosóficas da época, segundo o qual "só existe sensação ou experiência de entes sensíveis"; ou seja, é impossível ter uma sensação universal. Por outro lado, há um princípío de origem neoplatônica, mas igualmente difundido e aceito, que preconiza Deus como ser individual plenamente real (ens realissimum).



Este segundo postulado ainda criava outros problemas. Em primeiro lugar, se Deus é um ente individual, resta saber se ele também pode ser simultaneamente universal. Para fazê-lo, existem duas possibilidades. A primeira é admitir a ambivalência ontológica de um Deus individual e universal, coisa não muito difícil ao pensamento católico acostumado com a co-validade dos dogmas da Unidade e da Trindade. A segunda alternativa consiste em admitir a Sua universalidade e negar a realidade última do sensível.



Uma terceira via, escapando aos termos da aporia, consistia em admitir universais e sensíveis numa cadeia hierarquizada de seres.



Observe-se, no entanto, que as duas correntes apresentadas até agora possuem um denominador ontológico comum, ainda que mínimo: ambas admitem a realidade dos universalia, a primeira considerando-o plenamente reais, enquanto que os entes individuais participariam da sua realidade; a segunda, invertendo os termos do problema, e considerando que são os universais que participam das coisas realmente existentes. Ambos, portanto, podem ser (neste quesito) reunidos sob a designação comum de correntes realistas.



Contudo, para além das consequências teológicas, importa ressaltar outras interessantes proposições medievais sobre o tema. Assim, além dos partidos já citados, da imanência e da transcendência do universal, ou seja, das correntes realistas, ainda havia dois outros grupos.



O primeiro grupo considerava os universais como conceitos abstratos, denominando-os de universais post rem (posteriores à coisa e exteriores a ela), como conceitos humanos ou ens ratione (ente de razão).


Já o segundo partido vislumbrava os universais como meras entidades linguísticas, nomes sem realidades, simples "sopros vocais" (flatus vocis), como termos genéricos aos quais nada corresponderia na realidade.



As duas correntes acima citadas também possuem um denominador comum óbvio: o de negar a realidade dos universais, e a de admiti-los como entes nominais, nomes (nome + conceito, para os primeiros; simples nome, para os segundos). Por isto, receberam a alcunha geral de correntes nominalistas.



As correntes realistas e nominalistas se desdobraram em inúmeras versões, moderadas e extremas, cujo inventário seria longo e desnecessário efetuar. A rigor, são raros os casos de interpretação unilateral da questão. O mais comum é verificar-se a admissão de mais de uma espécie de universalia por parte dos pensadores e das correntes, variando a ênfase ou primazia conferida a algum deles.


Assim, mais interessante que o arrolamento de nomes e posições respectivas, é inteligir todas as espécies num quadro de correlações. Portanto, a título de compreensão didática, pode-se classificar os quatro sentidos da seguinte maneira:



a) Sentido ontológico: universal ante rem - transcendente, real e existente em ato para além do ente singular. Universal como ente.



b) Sentido gnoseológico: universal in re - imanente, real, mas só existente em ato na coisa concreta (jamais fora dela ou em si) – universal como propriedade



c) Sentido lógico: universal post rem – universal como gênero conceitual ou nome coletivo (classe ou coleção). Universal como conceito, entidade conceitual.



d) Sentido linguístico – nomina ou flatus vocis – nome genérico, ao qual não corresponde nem ente real nem entidade conceptual.

















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