"Quero estudar, e não consigo". Será que a análise precedente se aplica a esta situação também?
O aspecto da concretude intermediária incide sobre a quase totalidade dos atos humanos. A rigor, toda ação possível pode ser pensada em diversos graus de abstração, nos quais até mesmo a sua negação parcial é pensável sem contradição. É o caso da criança que diz à sua mãe "quero comer", mas que rejeita sucessivas coisas que esta vai trazendo à mesa. O fato de ela estar com fome não invalida o não-querer-comer isto ou aquilo. Se a mãe ajudar a criança a elaborar, logo descobrirá o que é que ela tem em mente. Neste caso, a criança tem a sensação orgânica da fome, mas não elaborou a intencionalidade de comer.
Se o tão concreto ato de comer pode emergir em meio a um anseio inespecífico mas limitado, a tal ponto que o sujeito precise despender um significativo esforço consciente para dar conta do que deseja e quer, eis que um ato como estudar necessita de maior elaboração ainda, a fim de descer do plano abstrato da simples ideação passiva, do mero devaneio descompromissado, do puro concluir que se deve estudar e já imaginar, com isto, que já se o quer.
Estudar é uma atividade ainda mais abstrata do que comer. Possui um espectro muito maior de significações em direção às quais a intencionalidade pode se projetar, e a partir daí desdobrar-se objetivamente em vontade e subjetivamente em desejo. Estudar uma matéria, um assunto, fazer um curso, cumprir o edital de um certamente, um idioma? Para cada uma destas alternativas, há escalas próprias de intermediariedade que precisam plenificadas e expandidas para que a intenção primeira alcance o resultado final.
É preciso, portanto, elaborar o projeto estudar, para que este possa acender o desejo e insuflar a vontade. Todavia, este tema nos ajuda a introduzir um outro, muito importante: o tema das intencionalidades ocultas, dos desejos inexpressos, das vontades camufladas. O homem é um ser voltivo e desejante. É no mundo sob a forma da projeção, tal como minudentemente analisado por homens da estirpe de Hegel, Heidegger ou Sartre. Deste modo, é possível afirmar que, em condições normais, ele está sempre intentando, querendo ou desejando algo – ainda que ele assuma como tarefa cumprir a vontade de Deus, deseje não desejar ou intente que o mundo seja qual é, sem modificá-lo.
Intenção, vontade e desejo são, por natureza, negativos. São negações da realidade tal qual está aí agora. Pretender aniquilá-los, tentar reduzi-los ao grau zero, como propõem certas doutrinas da transcendência do mundo é possível, sim: não no sentido de redução ao grau zero, mas ao grau um, ao mínimo. Posso recolher minhas intenções numa intencionalidade, meus atos numa atitude, minha vontade num ato de aceitação da vida, meu desejo ao nível da renúncia. É possível até indagar-se se este concentrar-se de tais fenômenos em sua expressão mínima não equivaleria ao fazê-los reencontrar a sua essência primigênia. Talvez seja o caso. Mas, para sabê-lo, há que antes refletir-se sobre o modo pelo qual primariamente se dão em nossa experiência mundana diuturna.
Enquanto fenômenos negativos, intenção, desejo e vontade parecem-se com investigador, delegado e agente a perseguirem um formidável fugutivo. Dirigem-se ao Agora para negá-lo, para arrancá-lo da situação em que se encontra, do ser no qual ora consiste; contudo, ao nele chegarem, notam-no escapando uma vez mais. O agora perseguido, quando uma vez alcançado, já é outro.
O próprio agora, portanto, tem uma estrutura negativa. Não se confunde com a imutável fixidez afirmativa do passado, que é o que é e não mais se modifica; nem com a fluidez oniafirmativa do futuro, no qual, em tese, tudo é igualmente possível; tampouco com a lassidão durante do presente, este moribundo que se entrega à morte em lenta evanescência, recusando-se a acreditar no eterno morrer-e-renascer do Agora, tentando resistir à negação por meio de afirmações cada vez mais débeis.
Obviamente, não estou a falar de passado, presente e futuro como realidades ontológicas, cujo escopo transcende à fenomenologia. Refiro-me ao modo como lidamos com eles, como os vivemos, quotidianamente. É possível cuidá-los de maneira diversa, a partir de uma diferente compreensão do dos fenômenos humanos que tentamos meditar aqui.
Em face do que agora é, intenção, vontade e desejo dirigem-se para o modificar. Para o negar, portanto. No comum das vezes, pensam negá-lo pela afirmação de outra realidade, de um possível ainda não concretizado, cuja realização implica justamente o desfazimento deste Agora, a sua conversão em outro. O problema, contudo, é que não há como afirmar outro Agora. Ele é este movimento infinito de negação, de transcendência, de recusa do que está aí.
Evidentemente, negação e afirmação possuem um aspecto relativo. Na conhecida sentença de Spinoza, toda afirmação é uma negação. Dizer sim a isto é negar tudo o que é não-isto. Pintar a casa de verde é recusar-se a pintá-la de todas as demais cores, e escolher este verde em especial é rechaçar as demais tonalidades.
Na contramão, talvez a coisa seja idêntica. Talvez se poderia dizer que negar implica afirmar o que não foi negado, na necessidade do contraditório e na possibilidade do contrário. Se a a cobra não é mamífero, ela é necessariamente um não-mamífero, e possivelmente um peixe, ave, réptil ou anfíbio. Aristóteles considerava esta negação quase-universal como o procedimento dialético de demonstração: se tenho quatro alternativas e refuto três, demonstro a restante.
Trazendo tal ordem de idéias ao nosso tema, talvez possamos dizer que o agora é relativamente afirmativo: ele nega algo ao tempo que afirma outra coisa, ou melhor, ele se nega ao instante mesmo em que se reafirma. É perfeitamente possível avaliar a partir deste ponto de vista; inclusive, é ele que prevalece no mundo quotidiano, no qual atentamos mais para a aparência afirmação do que para a aparência negação: não dizemos que a semente está deixando de ser, mas que o broto está vindo a ser. Que se empregue a linguagem afirmativa para descrever os projetos, os desejos e as ações, tendo em vista sempre seu caráter relativo, e sua interior natureza negativa.
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