"Quero escrever, mas não consigo". Parece contraditório emitir um juízo desta natureza.
É bem verdade que posso querer algo e não consegui-lo: posso querer alcançar aquela maçã que está no galho mais alto, estirando-me na ponta dos pés, em seguida saltando com o máximo de impulso, e mesmo assim fracassar no meu intento.
Todavia, há que se esclarecer duas coisas aí. Primeiro: qual foi o conteúdo efetivo da minha vontade? Qual foi o modo de atuação dela? A partir destas duas respostas, torna-se possível esboçar alguma reflexão sobre o que significa querer escrever e não o fazer.
Eu tenho a intenção de alcançar a maçã. Elaboro a minha estrutura intencional tendendo para a posse e fruição dela. Mas alcançar a maçã não é, nem pode ser, o conteúdo da minha vontade. Esta tem por objeto sempre um agir, uma conduta. Não pertence à sua alçada o resultado: este é objeto do desejo. Num exemplo impreciso e sumário, podemos dizer: os jogadores em campo querem fazer o gol. A torcida na arquibancada deseja que ele aconteça.
Posso desejar ou não comer a maçã. Posso desejar ou não alcançá-la. Mas, uma vez desejando um ou outro destes resultados, seja o simples alcançar, seja o alcançar e comer, resta-me querer ir em busca do que foi intentado, é preciso que o desejo subjetivo se manifeste em realidade objetiva, em ato volitivo.
Desejo e vontade são derivados da intencionalidade, a qual é uma elaboração da realidade, um projeto. A intenção é uma realidade projetiva, o desejo uma realidade subjetiva e a vontade uma realidade objetiva. O desejo é alma, e a vontade é corpo. A intenção é mundo. Mundo possível, possibilidade real a ser assumida e realizada ou não.
Deste modo, não posso querer escrever e não conseguir. Primeiro, porque vontade é já objetivação, corporificação, ação, modificação da realidade: querer escrever é escrever. Posso ter o desejo de páginas escritas ("desejo escrever aquele artigo hoje!"), almejar este resultado concreto, e ele não se efetivar. Ou porque não quis, não objetivei em vontade o meu desejo subjetivo. Ou porque, objetivando-o, circunstâncias supervenientes tornaram ineficaz a minha conduta: o computador deu pane, e perdi a página escrita; faltou energia no bairro; terrível dor nas mãos impossibilitaram-me de manuscrever ou digitar.
É evidente, portanto, ser uma facécia afirmar que "querer é poder". Mas deve-se dizer, assertoricamente, que "querer é tentar". É só é possível falar em tentativa quando os objetos do desejo e da vontade não coincidem, isto é, quando há um resultado distinto a esperar em face da conduta a praticar. Desejo e quero mover o braço: ei-lo movido. Desejo comer uma omelete, e decido querer prepará-la.
O ato de escrever, entretanto, parece perturbar a princípio esta tranquila distinção do querer e do desejar, e por uma série de motivos diversos. Tentemos compreendê-los.
E primeiro lugar, se desejo escrever e o faço, o escrito obtido ao final do processo não coincide inteiramente com o escrito desejado. Aliás, é impossível desejar escrever exatamente algo assim e assado, com todas estas palavras, frases, idéias, com este singular arranjo. Somente um escrivão, ao transcrever uma certidão de inteiro teor de um documento qualquer poderá se gabar de ter escrito exatamente o que desejou.
Mas, a rigor, nem mesmo ele poderia arrogar-se tal feito, salvo quando possua já em sua mente o inteiro teor do documento a reproduzir, tarefa ingrata até mesmo para Funes, o memorioso. No comum das vezes, tanto o transcritor de texto velho quando o escritor de texto novo querem o ato e desejam o resultado em um nível relativamente abstrato, ou, se preferirmos, numa concretude intermediária. Dito de outro modo: o resultado transcende o desejo.
Talvez aí residisse uma escapatória para o escritor frustrado diante do papel em branco. Ele pode escusar-se do fracasso alegando que desejou e quis como mandava o protocolo, mas que faltou a tal da transcendência, o emergir da novidade, o acontecer da escrita, como alguém que preparou a massa e colocou pra assar, mas o bolo não subiu.
Contudo, parece ser o caso de perguntar ao malogrado escritor se o texto que não saiu foi desejado e querido com concretude suficiente. Em outras palavras, é preciso saber se passou-se da intencionalidade para o desejo e a vontade, da preparação para a execução. No mundo prático, a distinção entre o projeto e a realização, a preparação e a execução, muita vez é relativa ao espectro da observação. De certa maneira, cada ato é execução em relação ao antecedente, e preparação em relação ao consequente. Assim, o que chamamos concretude intermediária é uma preparação e uma execução parciais.
Retornando ao exemplo dado, a cozinheira pode dizer que executou o projeto de fazer o bolo ao preparar a massa e colocar no forno – ainda que tenha esquecido de acrescentar fermento. Uma massa de bolo sem fermento não é uma massa completa, não preenche todas as condições para que o ato final do levar ao forno possa levar ao resultado desejado. Em síntese: faltou fazer e, portanto querer, algo essencial.
Deste modo, o escritor paralisado pode estar esquecendo ou deliberadamente omitindo determinado fermento específico, ou seja, sua concretude intermediária deve descer um nível mais próximo do executar concreto. Obviamente, abre-se aqui para cada contexto, como o do escrever, toda uma ciência ou arte das execuções prévias, dos atos preparatórios, ou das etapas de realização, cuja corporificação em ritual de escrita provavelmente seja única para cada escritor. Tal parece ser a função dos esboços, resumos, sumários prévios, mapas mentais, conforme o que se há de escrever.
Com base nisto, é provável que o escritor afadigado pela inérica da escrita esteja, em verdade, na situação de desejar o escrito sem querer concretizar o ato preparatório. E trata-se de tentar, em cada caso, identificar a razão específica de bloqueio em face daqueles instrumentos criativos, ressalvada a hipótese de estar-se diante de um não-querer-escrever absoluto (mesmo desejando-o).
A segunda observação a ser feita correlaciona-se estreitamente com a primeira. Escrever é do tipo de conduta que, em si mesma, traz seu resultado, é uma conduta expressa numa ação plena. Salvo se a ela se adiciona uma meta específica, como as quinze páginas por dia às quais Piaget se obrigava. Concentrada em seu princípio de conduta, ela faz coincidirem vontade e desejo, eliminando as amarras que poderiam se interpor entre o desejo e a vontade: quero escrever toda vez em que o desejo, desejo escrever toda vez que o quero.
Reduzida ao essencial, a volição de escrever abre largo campo à transcendência, dando fermento ao bolo, não limitando-o a alguma intencionalidade específica e limitadora. Aliás, este abandonar uma limitação prévia é conduta de transcendência, ato de transgressão que costuma incidir sobre o processo criativo: uma das melhores formas de fazer algo bom é reformar inteiramente um esboço ruim. Começar com alguma idéia concreta aversiva para dela afastar-se vigorosamente é mais fecundo do que partir da idéia vaga e entorpecente do tema in abstracto.
Contudo, se é possível pensar na situação do desejo sem vontade, também é possível imaginar-se o inverso. É o caso do escritor que quer escrever a todo custo mas não elaborou o quê. A concretude intermediária é já conduta. Em relação a ela, começar a executar é atingir um primeiro resultado. Se quero ficar malhado, decido matricular-me na academia: eis uma concretude intermediária, pois ela me prepara para executar a conduta que me levará ao resultado. Em relação ao matricular-me, o começar a malhar é um primeiro resultado, e o ficar malhado um resultado segundo, um resultado do resultado.
Deste modo, na cadeia de eventos que leva da intenção ao resultado, passando por projeto, desejo, decisão, vontade, preparação, execução, há uma série de momentos intermediários que são conduta-e-resultado, objetos de desejo-e-vontade, objetos de ação e paixão. Somente a intenção é pura conduta, e somente a coisa mesma é puro resultado. Escrever, em abstrato, é executar a intenção primordial e preparar a obra final.
Para tornar mais real este esquema, demasiado abstrato, é preciso lembrar que os diversos elementos do processo não estão rigidamente separados numa sequencialidade unilinear. Por exemplo, para atingir o resultado final, preciso querer e executar atos-resultado preparatórios ou intermediários: para tais atos também valem toda a sequência que vai da intencionalidade primeira a resultado último. Preciso desejar e querer fazer o esboço, preparar-me para ele, etc e tal.
Para muitos escritores, talvez aí resida o problema. O livro pertence aos anos e aos meses; o capítulo ou o artigo pertence às quinzenas e semanas. Mas o esboço e as páginas pertencem aos dias, como os parágrafos às horas e as linhas e períodos aos minutos. Não adiantar querer escrever o livro sem querer fazer o esboço. E não há como fazer o esboço sem também desejá-lo, e sem antes intentá-lo. Entre querer escrever o livro e consegui-lo, vai um tempo grande. Mas, entre querer escrever a linha e consegui-lo passa bem pouco tempo.
Com isto, não pretendo condenar o homem à deliberação infinita. Muitos indecisos talvez se paralisem por este excesso oposto. Para as ações intermediárias, para as condutas executórias, para os procedimentos de rotina, é preciso possuir roteiros. Se para ir trabalhar o homem precisasse deliberar como amarrar os cadarços, o fluxo existencial paralisaria desastrosamente. Podemos até enunciar, como princípios, a elaboração de roteiros para os atos e resultados intermediários, e a concentração dos diversos elementos do ato intermediário numa única performance ou gesto performativo. Crie o escritor o seu roteiro de execução da atividade de escrever e o seu ritual de preparação para o exercício, e liberará a mente para o irromper da transcendência.
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