A consciência primitiva, a filosofia clássica e a nova filosofia para Dewey

Para Dewey, o homem se distingue dos animais inferiores por reter a experiência vivida. Revive, pela memória, o que passou. Associa acontecimentos presentes a outros semelhantes do passado. Com isto, vive num mundo a um só tempo físico imediato e simbólico mediato.

Contudo, a memória é inexata, porque emocional. Movida pelo interesse, nos evoca o que pode acrescetnar ao presente nova significação a partir do que não está aqui agora. Ela é experiência indireta, com as emoções do evento findo, mas sem os riscos. Dewey ressalta agudamente: o triunfo da batalha é mais comemorado na dança bélica posterior que no momento em que se concretiza.

Na experiência atual, ao revés, só se cuida da tarefa presente. Só a recordação faz surgir o drama, com início, meio, clímax e desfecho. 

Na consciência primitiva, esta fragmentariedade e seletividade emotivas da memória são superlativas. Ela é quase que fantasia e imaginação, quase que absoluta recriação do vivido outrora.  A supressão do desinteressante, a reorganização da sequência, tudo isto faz com que a consciência primitiva seja povoada mais por sugestões que por recordações. 

Com base nesta interpretação, Dewey chega a rechaçar o mistério atribuído pelos estudiosos da história primitiva à multitude de fábulas e mitos e cultos. Para ele, a explicação é simples, e reside na contraposição entre pequenos picos de atividade espaçados por longos períodos de ócio, nos estágios que precedem à agricultura e outras técnicas mais avançadas. Ou seja, a suposição de que eles estavam sempre atarefados é projeção nossa. 

No ócio do corpo, o espírito humano precisaria prender-se a algo, pois que jamais inativo. Daí o papel da reminiscência, reelaborada para fins de narrativa, que culmina na dramatização dos animais. Dewey arrisca dizer que, quando não trabalha ou luta, o homem vive num mundo de sonhos, regido pela memória fantasiosa, no qual racionalidade e irracionalidade são irrelevantes. 

É a partir daí que a filosofia arrancará. Este arsenal de crenças memoriais não se destina a explicar o mundo. É figurativo, simboliza medos e desejos, exprime emoções. É poesia. Para chegar à filosofia, precisa passar por dois estágios. 

O primeiro é a consolidação em experiências típicas, tradições. Mímicas engendram ritos. Fatos criam regras. Histórias criam mitos. E isto é transmitido pela educação. O governo intervém reelaborando e unificando crenças e tradições para fins de autoridade. 

O segundo elemento é a necessidade de organizar toda esta tradição consolidada com o conhecimento positivo do mundo, que se vai desenvolvendo em paralelo. Ele traz grandes sequências de explicações, aprimoramento de habilidades e técnicas, e o hábito da experimentação, libertando tais artes do costume e da rotina. 

No geral, o complexo imaginativo e o complexo cognitivo convivem, e por vezes se entrelaçam. Contudo, amiúde sobrevém incongruências, solúveis quando um deles domina o outro. Mas a regra é que permaneçam como posses de classes sociais diversas. Os guardiões das crenças pertencem à classe dominante, enquanto artífices e operários ocupam camada inferior, sendo o seu conhecimento menosprezado. 

Na Grécia, sofistas e Sócrates representam o momento em que se tenta aplicar às crenças tradicionais o método positivo. Questionava-se se a estratégia, a ética e outras artes se ensinariam pela ciência ou pelo modo tradicional. A nova idéia soava escandalosa, pois "não se luta por lutar, luta-se pela pátria". 

No entanto, a crença na necessidade de justificar o costume, de depurá-lo racionalmente prosseguiu. A metafísica substitui-se às crenças tradicionais. A Filosofia, em grande parte da história ocidental consistiu na tentativa de conciliar os dois sistemas de crenças. Para isto, sua segunda característica: a tentativa de prova racional, de explicação racional a algo que não possui racionalidade intrínseca, o que se havia de conseguir mediante a lógica formal. 

Esta busca a prendeu longamente a exibição de terminologias, a lógicas conflitantes e a devoções fictícias a formas exteriores de demonstração: um apego ao sistema. 

Por tudo isto, as filosofias clássicas apresentaram a divisão da realidade em dois reinos. O mais elevado mundo metafísico, das crenças populares; e o mundo empírico da ação cotidiana. Para demonstrar esta realidade, a filosofia arrogou possuir órgão de conhecimento especial e superior ao da ciência. 

Mesmo os negadores da possibilidade de conhecimento da realidade transcendente não tiveram a coragem de negar que, se tal realidade existisse, deveria ser estudada com primazia. Apenas negavam a possibilidade de conhecê-la na situação das coisas como são. 

A nova filosofia, porém, cumpriria este papel para Dewey. Em vez de disputas sobre a natureza do real, confrontos sobre propósitos e aspirações sociais. Da tentativa vã de transcender a experiência, o anelo de melhor compreendê-la. De contemplações especulativas e impessoais sobre coisas em si, a sugestões de pensadores sobre como gostariam que a vida fosse. 

Com este esboço de análise genética, Dewey apresenta uma "fenomenologia da consciência humana", em perspectiva semelhante à de Hegel, mas com inflexão absolutamente diversa. Enquanto a consciência em Hegel ascende ao nível do Saber Absoluto, a consciência filosófica para Dewey, após o inicial apego formalista à tradição, desperta para a necessidade de reconectar estas crenças com a realidade, iluminando as forças morais da humanidade em torno de um projeto consciente de um futuro organizado solidariamente. Não um Saber, mas uma Práxis. Não absoluto, mas histórico e, pois, infinitamente perfectível. 

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