No mundo hodierno, a ciência ocupa – meritoriamente – o honroso papel de fulcro do processo civilizatório, de máxima expressão cultural (e inter-cultural) da humanidade, tal como outrora sucedera com a religião, com arte e mesmo com a política.
Concomitantemente – e não obstante sua fecundidade e disseminação, a filosofia tem migrado para um status subsidiário, complementar ou mesmo periférico, tanto por obra de muitos de seus cultores (que assim a pretendem) quanto em função do juízo extrínseco de pessoas de outras lavras (que assim a mal-entendem), e ainda, em virtude da própria auto-imagem cientificista da civilização mundial nascente (que assim a subentende).
Diante de um tal panorama, como vislumbrar a situação e a perspectiva do pensamento filosófico ora e avante? Deverá o mesmo se atribuir o papel de ‘servo da ciência’ como já o fizera em face da teologia, nos idos do medievo? Terá chegado o momento de uma espécie de ‘rebelião’, de uma luta por igual valorização nos quadros da opinião pública? Será o caso de o filósofo assumir uma atitude iconoclasta em face de certos troféus da ciência contemporânea, arrojando-se criticamente contra as suas propaladas solidez e robustez, com a mesma virulência com a qual Galileu e suas hostes golpearam, alhures, a filosofia especulativa a golpes de observação e experiência? Ou estará aberta a temporada de uma profícua reaproximação, para fins de mútuo benefício e geral engrandecimento da cultura?
Multiplicam-se as questões. Multiplicam-se, também, as respostas preliminares em favor da ciência, todas baseadas em argutas, mas limitadas, observações de estados de coisas; e boa parte, inclusive, brotadas de solo filosófico. A primeira via consiste em apontar reais ou supostas ‘deficiências’ da filosofia, seja atribuindo-as à sua própria natureza, seja imputando-as ao modo como tem sido praticada, para então concluir pela primazia da ciência pura e simples. Assim, Wittgenstein observa, com dolorosa justiça, que muitos problemas filosóficos são, amiúde, destituídos de sentido. Heidegger analisa o contínuo processo de emancipação de ciências particulares a partir de ramos clássicos da filosofia (logos, physis, bios, psyche, ethos, polis) como etapas de um processo pré-agônico. Neopositivistas asseveram, taxativos, que “o sentido de um enunciado é o método de sua verificação”, acusando a metafísica de não passar de ‘mera poesia’. Alan Sokal denuncia certas ‘imposturas intelectuais’ de filósofos que usurpam irrefletidamente conceitos da ciência natural.
O segundo conjunto básico de respostas prévias se concentra no pólo oposto, a saber, na exaltação das virtualidades e excelências da ciência como razões para que se lhe sobreponha inteiramente à filosofia. Assim, a lingüística diacrônica aliada à psicolingüística avançariam para além do que dizem ser mero rudimento de análise morfogenética no discurso de Rousseau sobre a origem das línguas. A ciência cognitiva, por sua vez, realizaria a promessa kantiana de uma “fisiologia do aparato gnoseológico humano”, ao tempo em que a relatividade e continuidade do espaço-tempo limitariam o alcance da idealidade metafísica de ambos na filosofia transcendental. A história dos sistemas de pensamento, vazada nos mais rígidos métodos documentais, explicaria melhor o devir civilizatório que a suposta teleologia otimista e rasa da “Fenomenologia do Espírito” de Hegel. Por fim, a cibernética dos hardwares constituiria a realização do sonho cartesiano do “mecanismo universal”, ao passo que a sua contraparte eletrônica, a informática dos softwares, prepararia, por meio da digitalização uniformizadora do conhecimento, o sonho leibniziano da mathesis universalis.
Este denso cipoal de perguntas enviezadas e respostas apressadas avoluma-se com a apaixonada – e (talvez por isso) legítima – reação do outro lado. De fato, nenhum coração dividido ousará inclinar-se para uma de suas amadas mediante uma comparação que se atenha exclusivamente aos méritos de uma e aos deméritos de outra. Assim, do mesmo modo que o primeiro partido, o segundo também batalha em dupla frente. Numa delas, abundam os inventários de defeitos ou limitações da ciência, efetuadas por aquela Sophia tão menosprezada em face da Episteme. Rousseau já imputara às ciências e as artes a degenerescência da civilização. Kant, por sua vez, já denunciara o caráter irrefletido do “fatum da ciência”, e alertara para a desfiguração acarretada pela falta de delimitação das fronteiras entre as diversas áreas científicas. Hegel, por seu turno, desvendou a ‘metafísica inconsciente’ dos conceitos da ciência que se pretende empírica: matéria, força, fenômeno, movimento, espaço, tempo, etc. Heidegger lembrou solenemente que “a ciência não pensa”. Karl Popper atacou frontalmente o grande dogma da “indução”, e negou a possibilidade de comprovar-se assertoricamente uma teoria. E antes de todos, lembre-se que o grande Hume, que baleou a metafísica com a impugnação da necessidade e da universalidade da ligação causal, atingiu com o mesmo tiro o calcanhar de Aquiles da ciência.
O segundo front desta trincheira também conta com os auto-detratores das fileiras da Episteme. Assim, a biologia de hoje reconhece o poder repressor dos preconceitos da comunidade científica, fazendo a sua mea culpa ante o Pasteur que ela tanto achincalhou em nome da ‘geração espontânea’. A medicina reclama de sua frágil semiologia de sintomas, diagnoses e prognoses, e se ressente de depender dos métodos estatísticos de apuração de incidência de doenças. A farmacologia sofre com o experimentalistmo de “tentativa e erro” na ministração de princípios ativos ao trato de moléstias, gastando décadas em muitas apostas infrutíferas. A física reconhece a ambivalência ontológica do trajeto da onda-corpúsculo (que, como a rota do parafuso de Heráclito, é reta e curva ao mesmo tempo), a incerteza epistemológica insanável da medição (que torna o ‘elétron em si’ incognoscível como o noumenon de Kant), a unidade meta-física de certos sistemas(como no famoso paradoxo Einstein-Podolsky-Rosen, que assegura instantânea transmissão de informação a longa distância entre duas partículas anteriormente conectadas, rompendo o limite de transmissão física de sinais, i.e., a velocidade da luz). A própria matemática, paradigma de ciência apodítica, sofre o mais duro golpe desferido pelo melhor gladiador do século ido: Goddel prova que é “impossível provar em absoluto”, mesmo em sistemas formais axiomáticos, arrancando proposições indecidíveis do seio da aritmética. E o ‘criminoso nato’, a ‘eugenia’, a ‘bomba atômica’, o ‘psicotrópico’... E a falta de controle sobre as forças físicas desencadeadas, as substâncias químicas inventadas, as espécies biológicas modificadas, as alterações neurológicas induzidas, as técnicas psicológicas experimentadas...
Por fim – e apenas para encerrar esse quadro exemplificativo do jogo interminável e insensato de ‘prós e contras’ –, a velha Sophia vem arrogando novas tarefas para si, mas talvez ainda numa velada auto-subestimação. Tal parece ser o caso da “Filosofia como Literatura”, da ‘Filosofia como Política Cultural’, da “Filosofia como terapia”. O mesmo se dá como os laboriosos epistemólogos que vêem a filosofia como ‘saber de segundo grau’, escavando, escrutando e explicando a “rosa sem porquê” da práxis científica. Em todo caso, ainda se vê um Gadamer postulando a autonomia do compreender hermenêutico-espiritual em face do explicar causal-naturalista; um Habermas ressaltando a eterna dialogicidade do pensar filosófico, para além das momentâneas estratificações de consensos e demonstrações científicas; um Appel a alertar que mesmo uma sociedade cientificamente dirigida por meio de medidas sociotecnológicas precisa discutir, avaliar e escolher entre elas – e eis aí, aliás, a dialegesthai, a boulesis e a proairesis (todas elas altamente filosóficas) de Aristóteles...
E então? Diante dessa amostra mirífica de possibilidades interpretativas diferentes, como equacionar adequadamente a situação da “Filosofia na era da Ciência”? Como encontrar um padrão analítico, um ponto focal seguro, neste panorama que mais parece um fractal visto através de um caleidoscópio?
A própria designação de uma “Era científica ou tecnológica” é, em si mesma, questionável. Mas não é este o elemento crucial nesta reflexão. Na dança interminável de críticas e apologias, o que se nota é que falta, na maior parte das vezes, aquilo que Sócrates e Aristóteles consideravam como o começo de qualquer conversa: o conceito ou (se possível) a definição. Se o próprio conceito é discutível, e se é historicamente modificável mesmo quando aceito, imagine-se a dissonância e o ruído acarretados pela mútua incompreensão de cientistas e filósofos baseados numa pré-concepção preconceituosa do outro (e isto não é um pleonasmo). Acrescente-se a isto que a irreflexão conceitual agrava este quadro com os danos funestos da auto-incompreensão de cada parte, multiplicando os pseudo-problemas (mais confusões que problemas) por quatro.
Assim, para que se possa falar (ou não) em hegemonia ou subjugação da ciência ou da filosofia, é preciso que se tente compreender melhor em que consistem uma e outra. Obviamente, isto já tem sido feito, desde alhures, e amiúde. E basta algumas colheres desta volumosa sopa histórica para efetuar duas breves, mas cruciais, observações.
Em primeiro lugar, uma parte dos méritos significativos da ciência contemporânea deve ser atribuída à sua inflexão sobre os seus próprios fundamentos, às suas questões fundamentais: que é a matéria? Que é a vida? Que é o número? Que é a mente? E muitas das respostas teóricas mais fecundas se elaboraram para além do paradigma estreito da ‘observação-e-experimentação’, através da discussão intelectual, da análise de implicações, da reformulação conceitual, da integração entre domínios específicos outrora isolados. Numa palavra, os homens de ciência dedicaram mais a apuro e tempo para enfrentar questões e tarefas genuinamente filosóficas em muitos momentos do seu percurso investigativo.
Por outro lado, a filosofia recente e hodierna se revestiu de novas armas para enfrentar suas crises e explorar seus novos campos e problemas. Assim, vê-se Heidegger a manejar com as armas da interpretação filológica; Foucault a teorizar sobre a episteme em meio ao labor da história da ciência; Deleuze a autopsiar - na ciência, na filosofia e na arte - a dança da diferença sob o ritmo da repetição; Arendt a elaborar sua analítica existencial da ‘condição humana’ a partir da análise política. E, agora, toda pesquisa filosófica sensata se submete ao controle da informação, das remissões, ao cálculo das conseqüências, à revisão por pares, e uma série de procedimentos que a tornam passível de uma análise extrínseca e preliminar ao conteúdo ali apresentado. Noutra palavra, ela assumiu necessidades e exigências científicas.
Assim, e sem demasiado apelo às profundezas ontológicas, nota-se que ciência e filosofia ensaiam os primeiros passos (inconscientes) em direção a uma futura práxis científico-filosófica una e coesa. A cegueira de suas fileiras ainda não as fez perceberem que militam do mesmo lado, com armas compartilhadas, de sorte que a lança de uma é o escudo da outra. Se Newton viu mais longe por estar ‘sobre os ombros de gigantes’, a ciência contemporânea vê mais fundo através do olhar ciclópico do saber acumulado. E se ela hoje governa com louvor (e também censura) a nascente civilização mundial, certamente o faz sob os auspícios de uma gloriosa Constituição (em parte não escrita) chamada Filosofia.
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