Platão e o show business: a propaganda é a alma
A disputa por mercado é coisa antiga. Desde sempre, quem não se comunica  mumifica (e até mesmo quem mumifica, ao fazê-lo, comunica, como os velhos  faraós...). Platão cedo se apercebeu desta severa e inelutável verdade; aliás, verdade ou  propaganda? Por mais que as suas intenções possam ter sido as melhores (e  certamente o seu Hades delas estava cheio: Justiça, Beleza, Verdade, Bem...), o  fato é que a análise a respeito do discursar e do escrever bem ou mal, no Fedro,  mais do que uma neutra e tranqüila “lição de coisas”, constitui uma magnífica  peça publicitária em prol da Filosofia (dir-se-á da Academia?), com direito a  todos os ingredientes que hoje perfazem as melhores estratégias do show  business.
Toda propaganda é um discurso, inda que não-verbal; mas a  proposição conversa é verdadeira? O Fedro, ao final, permitirá uma interpretação  a este respeito. Por ora, comece-se pelo mais próximo: qual a razão imediata com  a qual Sócrates convence Fedro a discutir o “tópico do discursar e escrever bem  e mal”? Não seria para "emular as cigarras que os observam, para que elas lhes  transmitam o seu dom especial" (259a-b), e para que comuniquem a Calíope (musa da  Retórica e da Poesia Épica) e Urânia (musa da Astronomia) (259c-d) que eles,  Sócrates e Fedro, as honram? Não são estas as musas mais caras ao filósofo, que  precisa discursar, com persuasão, sobre coisas verdadeiras (259e)? Haveria meio  melhor de propagação que o discurso belo, e coisa melhor a propagar-se que a  verdade?
Aliás, com base em quê Calíope, a mais velha musa (propaganda,  a mais antiga das artes?) e sua irmã Urânia desvelariam a Sócrates e a Fedro os  seus “arcana coelestia” (segredos do céu)? Não o fariam em função da boa propaganda  que deles fizessem as cigarras? E mais: qual seria o mérito deles,  uma vez que as Musas ainda iriam insuflar-lhes a Retórica e a Astronomia que  eles até então ignoravam? Não o fariam por eles resistirem ao seu cantar inebriante, e  não se deixarem adormecer em meio à preguiça mental (259a)? Que segredo mágico  possuiria aquele colóquio filosófico aparentemente despretensioso, em pleno  meio-dia, para dar-lhes uma imunidade ao discurso cantante e sedutor das  cigarras, análogo ao das Sereias, às quais Ulisses só venceu amarrando-se ao  mastro do seu navio e tapando os ouvidos dos seus marujos com cera? Que terceiro  saber haveria de praticar o aspirante aos píncaros da Retórica e da Filosofia?  Como no Cinema (arte da Musa caçula, e também propaganda), há que esperar até o  fim para que o suspense se resolva.
Ao refletir sobre isto tudo, o  consumidor (leia-se leitor) quase se esquece que cigarras falantes e Musas  celestes pertencem ao mythos. E por mais que hoje se tenha uma visão nova a seu  respeito, para além da simples lenda ou ficção, o fato é que, para o Sócrates do  Fedro, o mito é uma narração que se vai transmitindo sem examinar. Veja-se que a  única garantia que ele dá ao mito das cigarras é a transmissão oral tradicional:  “Conforme se narra” (259b). E antes disso, quando Fedro lhe indaga sobre a  veracidade do mito de Boréias e Farmacéia (229c), ele responde que “não seria um  despropósito se não o cressem, como fazem os sábios”. Ou  seja, o sábio não dá ouvidos ao mito, como não o daria às  cigarras...
Verdadeiro ou falso (quiçá valores que a ele não se  apliquem), o mythos é propaganda: Sócrates repreende Fedro, dizendo que “não  fica bem para um aficionado pelas musas jamais ter ouvido falar disso”, do mesmo  modo que é inadmissível não usar aquele xampu que todos (incluindo aquele  artista) usam. Esses discursos, “que agradam a todos” (229d), são “a invenção de  um homem sumamente hábil” (idem), e é ridículo “investigar coisas sem  relevância” (229e) quando ainda se é incapaz de “conhecer a si mesmo” (229e). Os  publicitários certamente sabem disto, vez que o desconhecimento de si é a base  da internalização passiva de falsas necessidades pelo comprador, enquanto que o  desconhecimento da coisa completa o quadro com a crença em suas falsas  qualidades.
Mas, e quanto a Fedro? Teria ele acertado ao aceitar a  discussão proposta, cuja necessidade fora justificada 'apenas' por um mythos? E  Sócrates, de sua parte, não teria incorrido em contradição, apelando àquilo que  outrora rejeitou, como arrazoado para o seu pedido? Deixando em suspenso o  elemento irônico no texto, pode-se dizer que, neste caso, o mythos apenas  reforça a justificativa já apresentada antes por Sócrates para esta discussão  (257a-b), realçando-a prazenteiramente. Como toda boa propaganda, embora não  diga a verdade, também não mente: cria uma ficção, uma imagem que salienta a  realidade, por contraste. Em que medida, porém, este ‘acompanhar a verdade’,  este anúncio ou oferta, difere do mentir puro e simples, é algo que a aludida  discussão se encarregará de explicar.
E, de saída, Sócrates indaga a  Fedro (259e) se o discurso bom deve ou não deve estar munido da verdade. Em  termos publicitários, é o mesmo que saber se um anúncio deve dizer o que é real  ou sugerir que algo o seja (ou não seja). E Fedro responde que, para boa parte  dos “marqueteiros” então em cena, basta a eficácia persuasiva, isto é, a  verossimilhança, a aparência de verdade. Sócrates percebe que, para tais Agências de Publicidade,  Marketing (retórica) não seria, portanto, a arte de divulgar belamente o produto  bom (verdade), mas o de divulgar bem (persuadindo) qualquer coisa, boa ou não.  Ou seja, o marqueteiro não precisa conhecer o produto: precisa apenas  vendê-lo.
Sócrates nota que há duas modalidades (ambas ruins) e dois  riscos neste “marketing agressivo” (260b), e o mostra com o exemplo de um  autêntico comercial: “supõe que eu te estimulasse a comprar um cavalo...”. As  modalidades são: a) O comprador não saber o que é cavalo; b) Nem o comprador nem  o vendedor saberem o que é cavalo. Os riscos, por sua vez, abrangem: a) O  produto inútil (tomar um asno por cavalo); b) o produto nocivo (tomar o mal por  bem). Em outras palavras, o marketing que não cuida de ter um bom produto (a  ocupação ‘sem arte’) é, ele próprio, um produto de má qualidade. E o que  permitirá distinguir o bom do mau produto é, justamente, um produto especial, que só pode  ser oferecido por aquele segmento de mercado das empresas que produzem o que  divulgam (e vice-versa): a Filosofia (261a).
Há um problema, no entanto:  como o marketing sofístico logrará enganar o comprador sem saber o que vende nem  a quem vende? Para vender o mau produto, há que fazê-lo parecer bom, e isto  requer que se conheça as similaridades entre eles (262a-c): mas isto já não é  conhecer o produto? Logo, todo marketing agressivo seria fraude e charlatanice?  Reduzir-se-ia a modalidade (b) à (a)? Veja-se que uma resposta apressada, em vez  de rebaixar, elevaria o conceito da concorrência junto a certos nichos de  mercado: afinal, para quem fabrica o mau produto, ou quer lucrar dinheiro e  poder a todo custo, o marqueteiro ardiloso é tão melhor quão mais  canhestro.
Um bom marqueteiro, porém, não cometeria este erro. Por isso, Sócrates faz exatamente o contrário, e reduz (a) a (b): o marqueteiro pérfido não conhece as  similaridades, e se engana ao tentar enganar (262b). E pior: não conhece  realmente nem o seu próprio produto (o “marketing”). Ou seja, a retórica, sem a  filosofia, não é nem retórica, é falsa arte. Mas, como demonstrar isto? Simples:  autopsiando os defeitos do “produto” de Lísias: não começar do princípio, não  definir seu objeto, não efetuar divisões de classes, não apresentar uma  seqüência de argumentos ordenados, repetir teses esparsas  (263a-264e).
Após a desqualificação da concorrência, resta a Sócrates  outra tarefa: mostrar que a filosofia não só é melhor, mas também pertence a um  gênero completamente diverso em face da sofística. Mas, como isto é possível, se  ela também cuida do “discursar e do escrever”? Ora, se o que diferencia o  remédio do veneno amiúde é a dose, o que difere o mau produto (inútil ou nocivo)  do produto bom, isto é, a ocupação ridícula da verdadeira arte, é o entendimento  da natureza do mundo como um todo (270c), pois somente ela permitiria conhecer  as naturezas da alma do comprador e do melhor produto a oferecê-lo(271b). E aí  se mostra a diferença do produto por ele oferecido: não se trata de oferecer  discursos (persuasão), mas de “conduzir a alma por meio da persuasão”: o produto  da concorrência é apenas metade (meio) do (para o) seu.
Se a propaganda  filosófica é melhor que a sofística, seja qual produto for, isto se torna mais  claro, para Sócrates, quando se trata de “cada uma vender seu próprio peixe”.  Assim, o que parece ser uma simples discussão sobre o escrever (274b et ss),  logo após à análise do discursar, se converte numa nova diferenciação entre os  dois produtos. Recorrendo a um novo comercial (um mythos), Sócrates faz Amon  (divindade solar suprema do Egito) dizer a Toth (deus inventor da escrita) que a  escrita fará, do leitor, um conhecedor aparente, do mesmo modo que o orador  destituído de filosofia (275a-b). E arremata, mais adiante, que o verdadeiro  discurso é “escrito com conhecimento na alma do aprendiz”(276a), um discurso vivo, que sabe quando  defender-se e quando calar.
A essa altura do texto, o leitor (leia-se,  dessa vez, consumidor) quase se esquece que o Sócrates do Fedro é um produto de  Platão, e mais: um produto escrito. Estaria ele, pois, vendendo justamente um  conhecimento aparente, um mau produto, como os maus marqueteiros? A resposta se mostra na bela alegoria do  escritor como agricultor (276b): o agricultor sensato não semeia para oito dias,  e fora de época, o que deve aguardar oito meses e clima própício, coisa que o faria um agricultor insensato.
Porém, entre ambas as alternativas, entre o agricultor sensato e o insensato, há uma terceira: o  agricultor sensato pode semear no verão, num jardim de Adônis em vez de numa  horta, para divertir-se ao ver o tenro florescer. Do mesmo modo, aquele que  conhece o justo, o belo e o bom, quando escreve sobre eles, o faz com dupla  função(276d): para divertir-se na velhice, recordando suas idéias mais antigas,  mas também para “ver brotar folhas tenras” em outros (não-discípulos) que o  lerem.
Mas, e quanto aos “florescidos”, como obter a verdadeira colheita  para além desta breve ramagem? Para isto, há que ir ao único revendedor  autorizado: à Academia. Uma vez lá admitido, receberá um discurso fértil, que  ensejará muitos outros, e capaz de ajudar ao que nele semeou (276e). Conhecerá  as coisas particulares, dividindo-as em classes, até alcançar as espécies  indivisíveis: as Idéias (277c). Compreenderá a natureza da alma, dos discursos,  e saberá coordenar uma e outros(idem) para os melhores fins, nas leis, nos  poemas e na tribuna.
Os diálogos Platônicos são  diferentes peças de uma única campanha publicitária: nem são discursos n’alma  escritos, nem folhas soltas ao vento. São “nobres divertimentos superiores aos  prazeres vulgares”(276e); são narrações sobre a justiça e outras virtudes  (idem): por isto, são permeados de mythos, alegorias, gracejos e brincadeiras,  como a propaganda das marcas consolidadas que, desdenhando do agressivo apelo à  compra, apenas se exibem com beleza, assinalando a sua  presença.
Confirmando a natureza deste terceiro discurso, entre a  seriedade e o engodo, entre a filosofia e a sofística, entre o produto bom e o  produto mau, Platão faz Sócrates concluir: “divertimo-nos numa conversação sobre  o discurso por tempo suficiente” (279b). Mas, sem esquecer de que está fazendo  propaganda, ele ainda encontra tempo para, no mais futurista estilo “Back to the  Future” (De volta para o Futuro), combater a concorrência futura (no tempo da  narrativa), porém cruenta (no tempo da publicação do escrito) – Isócrates  (279b): “há alguma coisa de filosofia presente na mente deste homem. Esta é a  mensagem das divindades deste lugar que comunicarei ao meu querido Isócrates”.  Pelo futuro acontecido, o Isócrates da “Escola Oratória”, adversário de Platão, é o fracasso de sua  caricatura retrospectiva. E, de tudo isto, fica a lição: a alma é o negócio de toda essa propaganda. E  a propaganda é a alma.
 
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