A contraposição entre mythos e logos costuma ser equiparada a uma outra, bem mais frequente, entre o irracional e o racional.
Para muitos, inclusive, a mitologia grega constitui uma primeira tentativa de explicação da realidade, depois secundada pelo rigor crítico do pensamento conceitual, pela filosofia propriamente dita – que, aliás, seria invenção helênica.
Em que pese a respeitabilidade de uma tal interpretação tradicional, talvez tenha chegado o momento de contemplar esta questão sob um novo ponto de vista, mais atento às semelhanças que às diferenças, e capaz de repropor, em outros termos, a distinção supra-indicada.
Para muitos, inclusive, a mitologia grega constitui uma primeira tentativa de explicação da realidade, depois secundada pelo rigor crítico do pensamento conceitual, pela filosofia propriamente dita – que, aliás, seria invenção helênica.
Em que pese a respeitabilidade de uma tal interpretação tradicional, talvez tenha chegado o momento de contemplar esta questão sob um novo ponto de vista, mais atento às semelhanças que às diferenças, e capaz de repropor, em outros termos, a distinção supra-indicada.
O que faltaria ao mito grego para ser racional? Estrutura lógica? Decerto que não. Possui uma articulação diferente da malha tradicional do argumento silogístico não é estar destituído de toda e qualquer lógica intrínseca. Ao contrário, aponta para uma série de possibilidades alternativas de manifestar o logos.
O mito, na concepção de Eliade ‘é a narração de um acontecimento no tempo primordial’. Ele não se desdobra num caos espacial: ao contrário, organiza o lugar e o espaço de maneira complexa, polilógica até.
Do mesmo modo, fixa uma sequência temporal de eventos, conectando ações humanas a conseqüências. Uma temporalidade logicamente organizada, portanto.
Além disso, apresenta uma trama articulada do Destino, bem como intervenções divinas guiadas por uma finalidade compreensível. Também aí uma logicidade presente.
Obviamente, outras objeções podem ser aduzidas em contestação à perspectiva aqui esboçada. No entanto, todas elas são razoavelmente respondíveis, de modo que a tese da ‘irracionalidade do mito’ não pode ser postulada como um a priori analítico, como premissa para outras demonstrações. Ela própria requer defesa e argumentação.
Questionada a suposta não-racionalidade do mito, a própria explicação tradicional que fala em uma transição do mesmo para a filosofia torna-se igualmente questionável. A historiografia filosófica compreende a passagem daquele a esta mais ou menos nos termos da passagem da ‘pré-história’ à história.
O mais curioso nisto tudo é que, no caso grego, a primeira história ainda é um “pré”: o período (indevidamente) chamado de pré-socrático. Porém, há de se indagar: como se deu esta passagem? E mais: ela realmente se deu?
O mais curioso nisto tudo é que, no caso grego, a primeira história ainda é um “pré”: o período (indevidamente) chamado de pré-socrático. Porém, há de se indagar: como se deu esta passagem? E mais: ela realmente se deu?
Para o filósofo brasileiro Álvaro Vieira Pinto, a pergunta pela “origem da filosofia” decorre de um mal-entendido. A filosofia não começa com certo evento fundador, ao modo de um regime político de uma nova família ou coisa do tipo. Ela radica na apreensão pensante da realidade, de modo que a origem da filosofia é o homem.
De fato, é uma atitude etnocêntrica ingênua querer fixar o nascimento do pensar racional em determinado lugar ou civilização, como se, durante milênios sem fim, o homem possuísse a razão sem o uso, como uma grande engrenagem nunca acionada ou como uma máquina cujo uso desconhecesse.
De fato, é uma atitude etnocêntrica ingênua querer fixar o nascimento do pensar racional em determinado lugar ou civilização, como se, durante milênios sem fim, o homem possuísse a razão sem o uso, como uma grande engrenagem nunca acionada ou como uma máquina cujo uso desconhecesse.
Em todo caso, os primeiros pensadores gregos efetuaram uma mudança interessante no curso da explicação da realidade. Que mudança foi essa? Substituir uma origem divina por uma origem natural?
Não. A physis de Tales está “cheia de deuses”; o Uno transcendente de Xenófanes e a Unidade de Pitágoras são Deus. O Logos de Heráclito é Um, e “quer e não quer ser chamado Zeus”. O ser esférico de Parmênides é divino, e é ‘amarrado’ por Moira (Destino) e Anake (Necessidade). E assim por diante.
Não. A physis de Tales está “cheia de deuses”; o Uno transcendente de Xenófanes e a Unidade de Pitágoras são Deus. O Logos de Heráclito é Um, e “quer e não quer ser chamado Zeus”. O ser esférico de Parmênides é divino, e é ‘amarrado’ por Moira (Destino) e Anake (Necessidade). E assim por diante.
Tampouco ajudaria a clarear o impasse dizer que estes pensadores ‘começaram a observar a realidade’. Além de isto significar a atribuição absurda de falta de realismo ao pensamento mítico, o fato é que também as observações de tais filósofos diferem do que hoje chamaríamos de mera descrição da realidade: onde é que está a água, o ar ou o fogo incorpóreos de Tales, Anaxímenes e Heráclito? E o I-limitado de Anaximandro? Com que fundamento eles justificam a audácia de pontificar sobre origem e fim de todas as coisas?
Uma tal questão, portanto, desafia quaisquer respostas simplistas e preliminares. No entanto, há boas razões para afirmar que mythos e logos não constituem dois momentos civilizatórios, duas “figuras” da evolução do pensamento humano, mas sim dois elementos inelimináveis do pensar como tal. Talvez se possa compará-los às coordenadas cartesianas, direções transversais entre si, mas pertencentes ao mesmo espaço ou nível de realidade.
Quiçá o mythos abranja as premissas fundamentais, os pontos de partida absolutos, o marco zero do pensar, uma vez que é impossível começar sem pressupostos. Por sua vez, o logos talvez consista nos argumentos, nas relações entre as premissas fundamentais.
Assim sendo, o que chamamos de mito, filosofia e ciência talvez correspondam a diferentes combinações de mythos e logos. Por exemplo, no mito de Édipo, há muitos acontecimentos (premissas) e poucas explicações (argumentos): predomina o mythos.
De igual modo, na interpretação pitagórica da Moira (Destino) como efeito proporcional das nossas ações, já há um contrapeso entre o pressuposto origínário (a existência da Moira) e as inferências derivadas (o modo como ela atua).
Por fim, na Terceira Lei de Newton, a toda ação corresponde uma reação em intensidade e direção iguais, mas em sentido contrário: há muita coisa explicada e muito se pode explicar a partir dela; mas nem ela está isenta de pressupostos irrefletidos ou não explicados (a existência indefinível desta coisa chamada ‘ação’, seu caráter espacial, a impossibilidade de uma reação em intensidade variável ou sentido diverso, etc).
Há, portanto, mythos e logos em todo momento do pensar. A vida, por exemplo, é um mythos, uma premissa absoluta e inexplicada, presente no mito judaico da criação, na Água elementar de Tales e na teoria do protoplasma primitivo da biologia. Assim também, o tema da explosão primordial aparece na mitologia chinesa, nas filosofias de Anaxímenes e Heráclito, e na moderna astrofísica.
Assim, longe de constituir parâmetro para a explicação do devir do pensamento, a parêmia mythos/logos constitui desafio perene para a própria historiografia filosófica, na medida em que cada nova compreensão de sua relação implica e requer uma nova reinterpretação dos fatos que se sucederam neste longo e acidentado percurso pensante do homem sobre a Terra, e que continuam a suceder, mesmo no intervalo entre o fim deste texto e o início da sua leitura, e para além desta, enquanto houver, neste mundo, primatas sem pêlos para contar o caso.
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