O conceito de Dasein (ser-aí) é uma daquelas criações pensantes que descortina todo um campo de problemas e questões inteiramente novos. Sem violar a famosa navalha de Occam que, na busca da univocidade do ser, vetava multiplicar os entes (numa teoria) para além do necessário, eis que Heidegger viaja na contramão e desvenda a ambigüidade (dir-se-á “multiguidade”?) do ser, na qual diferentes dimensões ontológicas ou modos de ser podem coexistir paralela ou transversalmente entre si, no mesmo ente.
Tal é o caso do Dasein: caracterizado como um ser-aí, o homem não deixa de ser homem, animal, cidadão, contribuinte, imagem de um deus, ponte para o além-do-homem, anjo que dorme ou o que quer que ele seja. Do mesmo modo, os demais entes intramundanos (inclusive, talvez Deus) não decaem na pura inefetividade ou na insuficiência ontológica tão-somente porque este modo de ser lhes seja estranho. Alertar para a estrutura do Dasein faz parte daquelas ‘revelações’ singulares que, na lição de Kierkegaard, constituem uma espécie de “mudança infinita”, na qual, justamente por ser infinita, “tudo fica como está”; porém, no caso do filósofo da Floresta Negra, não se trata de uma “mudança na eternidade”, mas do que se poderia chamar, a título indiciário, de “mudança no ser”.
Sim, no Ser. Ao recusar a milenar visão do homem que, sob a lógica predicativa do gênero e da espécie, o pré-judica como um animal rationale, um vivente automovente e raciocinante, isto é, como mais um ser “simplesmente dado" (Vorhandenheit), Heidegger aponta para uma coisa essencial: ser é, para o homem, algo que está em jogo, algo que se pode ganhar ou perder, com êxito e com fracassos, sem que nada se altere no mero fato de estar vivendo, no fatal “arrastar-se do útero à cova”. O Homem, enquanto ser-aí, é o ente cujo ser está sempre em jogo: ele pode marcar golaços assumindo as possibilidades projetadas nas quais está lançado, elaborando-as na interpretação, trazendo-as da mera circunvisão para a ocupação, plenificando o seu cuidado na preocupação pelo outro. Ou pode tomar uma goleada das forças desagregantes do falatório que lhe tranca o acesso originário ao ser, da curiosidade impermanente e dispersiva que o desampara, da facticidade de-cadente absolutamente providenciada e predeterminada pela tradição.
Obviamente, este “ganhar ou perder o Ser” não se confunde com o vir-a-ser ou com o perecer, absolutos ou relativos, com a morte biológica ou com a perdição teológica. O ser-aí humano está, de fato, incrustado num pedaço de matéria biológica quase que simplesmente dada, a qual cimenta-se numa matéria física realmente dada. Perder o ser significa aí perder o acesso a um modo originário e autêntico de ser. Mas, curiosamente, esta derrota pode se dar em meio à vitória ôntica mais retumbante, como talvez seja o caso do memorizador de livros de xadrez, que trucida os adversários sem que a vitória seja sua: ela é da tradição, dos vários seres-aí enxadristas que realizaram e providenciaram aquele repertório de comportamentos que ele só memorizou e aplicou.
Tudo isso, porém – vitórias autênticas e genuínos fracassos, bem como o empate ontológico da facticidade (no qual triunfa o impessoal – ninguém vence) – só é possível porque o Dasein, essencialmente, é existência. Ele é num mundo, que compõe a circunvisão próxima e remota de seus afazeres. Ele está junto a entes simplesmente dados que vêm ao seu encontro neste mundo. Ele, ainda, se aproxima de alguns destes entes sob o modo da ocupação ou manuseio, tornando-os manuais. Ele é com outros entes que também possuem o modo de ser do Dasein, e se preocupa com eles de variada forma, seja contra, seja a favor deles. Ele existe, na maioria das vezes, em meio à convivência da facticidade decadente e sua publicidade, sob a vigência autoritária do impessoal. Ele está lançado adiante de si mesmo, num conjunto de possibilidades originárias que lhe compete assumir ou não. Enfim, ele é um ente mortal que, para além de simplesmente sê-lo, é um ser para a morte, compreendendo-a como sua possibilidade derradeira.
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