Aristóteles inicia o segundo capítulo do livro quarto (gama) de sua (assim chamada) “Metafísica”, aquele que perfaz a sua "ontologia" em sentido estrito (ciência do ser), com uma tese fundamental: “o ser se diz em múltiplos significados, mas sempre em referência a uma unidade e uma realidade determinada”.
Nesta tese, há dois elementos fundamentais a serem considerados individualmente: a multiplicidade de significados (pollachos legómenon), e a referência a uma unidade (pròs en). Obviamente, tanto um quanto outro podem ser apreendidos de maneiras as mais diversas, compondo um mosaico de interpretações resultantes altamente heterogêneas entre si: afinal, se há muitas formas de interpretar a tal multiplicidade semântica, bem como de inteligir a referência a uma unidade, o mesmo se dará quanto às hipóteses de articulação destes dois elementos.
A multiplicidade semântica pode se dar, por exemplo, em razão de uma pluralidade heteróclita de acepções, das quais algumas sejam adequadas e outras não; neste sentido, a expressão "isto é lógico" pode ser apreendida de formas diferentes, algumas delas realmente embasadas numa compreensão elaborada do que significa o predicado "lógico", enquanto outros se utilizam do termo de maneira não-rigorosa, para exprimir outras idéias das quais o próprio faltante não está consciente. Nesta perspectiva, a varidade de significações para ser haveria de ser julgável a partir de algum critério ontológico, que descartaria boa parte delas como inapropriadas ou mesmo errôneas.
Além disso, a multiplicidade semântica pode ocorrer em função de uma multitude caótica e inarticulável, isto é, se originar de um caos semântico puro e simples, no qual inexista critério idôneo para realmente decidir acerca do significado mais preciso, ou, pelo menos, dos significados razoavelmente admissíveis. Assim, por exemplo, quem admitir que ser é o conceito mais universal e mais vazio de todos, impassível de ser referido a um predicado fundamental, haverá de concluir que todos os significados atribuíveis a ele seriam equivalentes, de modo que a sua catalogação seria infinita e inexecutável, tornando impossível toda e qualquer ontologia em face da inexistência de um critério ontológico para a investigação.
Do mesmo modo, a referência à unidade pode se dar num sentido fraco, isto é, como mero conglobamento formal ou extrínseco dos vários significados sob um gênero comum. Este conglobamento seria vago no tocante à intensidade ou compreensão das notas que perfazem o elemento predicativo compartilhado: um predicado, para ser comum aos diversos sentidos de ser, teria que ser ou vazio ou ínfimo.
No entanto, a referência à unidade também pode ocorrer em sentido forte, assinalando uma co-pertença ou integração visceral entre os variados sentidos atribuídos ao termo ser, como ocorre, por exemplo, com a palavra Direito, nas expressões: "meu direito pessoal", "o direito brasileiro", "isto é de Direito", "o Direito enquanto ciência social". Neste exemplo, não há uma simples reunião formal e externa de sentidos, derivável unicamente do fato de todos utilizarem o mesmo vocábulo; ao contrário, há uma correlatividade intrínseca entre todos eles, por mais que a eludicação de tal correlação ainda não esteja clara para o falante (e mesmo que nunca venha a clarificar-se).
Ocorre, no entanto, um problema: considerado sumariamente, o termo ser é dificilmente enquadrável de maneira adequada por estas duas determinações, seja isoladamente, seja de forma conjugada. Em primeiro lugar, a multiplicidade de sentidos tende ao máximo (ao infinito), uma vez que, de alguma maneira ou nalgum aspecto, tudo é, mesmo o nada. Por outro lado, a referência a unidade tende, em contraposição, ao mínimo (ao nada), à unidade vazia: que outra coisa poderia reunir os diversos sentidos da palavra ser, além dela (da palavra mesma)? Aliás, pensando com rigor extremo, nem mesmo a própria palavra ser, uma vez que, ela própria, enquanto palavra ou ente linguístico, é sob uma determinada maneira ou modo.
A inigualável sensatez de Aristóteles, no entanto, o salvaguarda de incorrer em qualquer dos dois extremos inviabilizadores de uma proposta: ele se previne tanto da multiplicidade caótica quanto da unidade vazia. Porém – e isto é o mais importante –, ele não o faz a partir de um mero ecletismo conciliador, de uma simples intermediariedade vaga ou de uma consideração afrouxada da questão. Ao contrário, a sua argúcia consiste em encontrar um denominador comum a ambos os lados da questão, um elemento que integre a multiplicidade e que garanta a unidade, que torne a primeira simplificável e a segunda desdobrável. E este elemento será um dos múltiplos sentidos que ele encontra para a palavra ser: a ousia, traduzida tradicionalmente como substância.
Assim, a afirmação inicial pode ser reescrita, provisoriamente, da seguinte maneira: o ser se diz em diversos significados, dentre os quais um é o "ser enquanto substância" e os demais estão, de alguma maneira, relacionados a este.
Esta tese se opõe tanto àquela que considera o ser como irremediavelmente unívoco, isto é, dito em apenas um significado, quanto àquela que o interpreta como dizível em plúrimas significações sem referência a uma unidade, ou seja, como possuidor da primeira propriedade, mas não da segunda. Sua unidade não é, pois, uma unicidade pura e simples. E a sua multiplicidade não é, portanto, uma mera diversidade.
Obviamente, todas as dificuldades anteriormente apontadas se recolocam. De certa maneira, a resposta aristotélica, a princípio, apenas desloca a pergunta: afinal, em quantos sentidos se diz a palavra ousia (substância)? Ela também se diz em muitos significados? E estes significados são ditos também em referência a uma unidade e a uma realidade determinada? A multiplicidade, caso se verifique, será igual à multiplicidade aqui pontuada, ou será diversa? Por quê? E a unidade referencial da ousia, como se articula com a unidade referencial do ser? Todas elas encontrarão solução a partir dos capítulos seguintes do livro gama, bem como dos demais livros da Metafísica. São cenas dos próximos capítulos da longa epopéia por ele chamada protè philosophia.
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