Miguel Reale - Filosofia do Direito - Cap 1 - O filósofo verdadeiro versus o expositor de sistemas

Ao iniciar sua majestosa Filosofia do Direito, refletindo acerca da filosofia em si mesma e de sua finalidade, Miguel Reale pontifica severamente: “filósofo autêntico, e não o mero expositor de sistemas, é, como verdadeiro cientista, um pesquisador incansável, que procura sempre renovar as perguntas formuladas, no sentido de alcançar respostas que sejam condições das demais” (cap. I, pp.6-7). Nesta enunciação aparentemente introdutória, encontramos uma série de elementos indicativos das convicções profundas do mestre brasileiro, que nos cumpre analisar:



a) a distinção entre o filósofo autêntico e o expositor de sistemas;



b) a semelhança entre o filósofo autêntico e o cientista



c) a tarefa perpétua de renovação das questões filosóficas



d) a necessidade de encontrar respostas condicionantes das demais respostas



No que se refere ao primeiro item, observe-se que Reale não se insurge contra os grandes criadores de sistemas filosóficos, mas ao mero expositor de tais sistemas. A sua censura não se dirige a um Aristóteles, a um Kant, a um Hegel, mas aos que se intitulam aristotélicos, hegelianos, kantianos.



A filiação prévia a um sistema filosófico é uma dupla traição à filosofia: primeiramente, à filosofia do passado, ao legado do mestre, que será fossilizado ao nível por ele atingido em vida, em vez de ser levado a novos cumes. Ademais, a tendência da interpretação consolidada é estratificar-se em incompreensões cada vez mais obstrutivas, impeditivas de um acesso originário e pleno ao texto do grande mestre. As correntes filosóficas são, via de regra, acometidas por vícios de leitura: gerações e mais gerações se sucedem, interpretando o filósofo da escola sempre de um mesmo modo, ou seja, não interpretando de modo algum.



Além disso, a escolarização do pensamento é uma traição à filosofia do futuro: ela impede o futuro de acontecer, o atrasa, o amortece, o deforma. Trata-se de uma insistência desarrazoada no até-aqui do velho mestre, até-aqui que não é o do seu discípulo descerebrado, pois, para ele é um lá-atrás.



Não se entenda com isto que a filosofia padeça de um obsoletismo intrínseco e insanável de modo que um Heidegger, falecido há quatro décadas, deva ser desprezado em favor de primeira novidade filosófica do momento. Diremos sempre com Schopenhauer: “a obra-prima acabada de um verdadeiro grande gênio terá sempre efeito profundo e duradouro sobre o conjunto do gênero humano, a tal ponto que é impossível vislumbrar quão longínquos séculos ou países a sua influência aclaradora é capaz de alcançar” (in: Crítica da Filosofia Kantiana).



O que se defende aqui não é abandono de algo como velho, mas o impedimento de um envelhecer: em vez de ir ao passado e lá ficar, trazer o velho mestre ao presente, fazê-lo sobreviver a si, apresentar a sua obra às questões do momento, dialogar com ele. Diálogo, porém, é uma convergência de pensamentos, são dois pensamentos dizendo o mesmo: a minha proposição e a tua concordando. Ele só existe onde há mais de um pensar, portanto. Quando há apenas um pensador em cena, tem-se a reveberação de um discurso, em face do qual o estudioso se comporta ao modo do assentimento ou da recusa passivos: sim, senhor; não, senhor.



Mas qual seria a diferença entre o sistema apresentado pelo criador e o sistema exposto pelos seus continuadores? O sistema de um pensador original ainda está prenhe de virtualidades, de questões a resolver, de princípios a explorar, de premissas a examinar; o sistema dos asseclas está enregelado em sua feição atual, definitivizando respostas provisórias, desconsiderando as questões irresolvidas, e enxergando as proposições nucleares como um conjunto de conclusões. Na circularidade infinita do pensar, cada proposição é premissa e conclusão, argumento e prova, postulado e tese; caberá ao indivíduo que as examina considerá-las prospectiva ou retrospectivamente.



O verdadeiro pensador está sempre pensando para a frente, sempre tentando vislumbrar quais questões ou quais respostas poderão ser atingidas pelo baú de sementes que está em suas mãos. O mero expositor apreende as sementes unicamente como grãos, e as degusta, e as digere, e as metaboliza na carna passageira do instante histórico, ou seja, as desprocessualiza, as des-historiciza.



É justamente isto que, para o velho e sempre novo Reale, aproximaria o filósofo autêntico do cientista como tal. O verdadeiro físico não se atém à robustez e magnitude aos Principia de Newton; ele lhes presta ao mais reverente tributo possível, continuando a sua obra, pensando a partir dela, verificando até onde ela consegue ir, constatando-lhe os limites, corrigindo-lhes as obscuridades e contradições, acrescentando novas teses, numa palavra – levando adiante a chama.



Diante de tais assertivas, seria o caso de indagar: mas não é isto que faz (ou pretende) o expositor de sistemas? Ele não é a própria encarnação da fidelidade pensante, da reflexão demorada, da continuação do legado? Não. Ele re-pensa o velho mestre a partir do fim, das suas asserções e conclusões, do seu texto. Re-pensar é recozir a sopa velha – não é nem tomá-la e nem preparar um novo caldo.



Diferentemente do expositor de sistemas, o cientista não re-pensa: ele pensa novamente, pensa originariamente, pensa o novo, pensa a partir da origem. Ele recomeça a partir das questões colocadas pelo precursor, e se vale de suas respostas para melhor pensá-las: ele as julga. Newton disse ter visto mais longe por estar sobre os ombros de gigantes. Mas ele estava sobre os ombros, e não olhando para eles, admirando-os e descrevendo-os, de costas para o panorama vislumbrado pelo gigante. É isto que, infelizmente, fazem os anões do pensamento.



O filósofo autêntico, por tudo isto, não só pensa originariamente as questões dos seus predecessores (que são o verdadeiro legado), mas também acrescenta novas questões originárias. E as questões filosóficas têm o poder misterioso de rejuvenescerem diante das suas irmãs mais novas, surgidas das reflexões suscitadas pelo presente histórico. E isto não acontece em função de um qualquer verniz conceitual, de uma aparência de novidade. Ao contrário, possui uma razão profunda, essencial, que consiste no fato de que elas realmente fazem parte do momento histórico, constituem-lhe o cerne, a seiva, o lado de dentro. É por isto que a velha pergunta aristotélica sobre a Justiça, “como dar a cada um o que é seu?”, se renova em face da questão tormentosa “e o que fazer com os que nada nunca tiveram?”.



Esta diferença de perspectiva repercute, também, na natureza da resposta filosófica genuína. A grande resposta se torna condição de todo outro perguntar e responder. Hoje, não só meditamos a respeito da distinção aristotélica entre potência e ato, como também pensamos novas questões e respostas a partir dela. Em atenção à inspiração kantiana do jovem Reale, diríamos que as respotas filosóficas são transcendentais, isto é, são condições de possibilidade para as respostas factuais, objetivas, históricas, empíricas, técnicas, científicas, etc. Elas não só não passam, como é a elas, inclusive, que compete determinar o que deve passar ou não passar, bem como dizer, em suma, o que significa passar.





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