O compreender, para Heidegger, tem uma ligação essencial com o modo pelo qual o Ser "se dá" ao homem e para o homem (enquanto ser-aí). Para ele, a questão da compreensão do sentido do ser possui uma espécie de "prioridade ontológica" em face das demais1: não somente com relação às outras que com ela perfazem o cômputo total da ontologia per se, mas também em face de toda e qualquer investigação ôntica, como a dos diversos saberes específicos a respeito deste ou daquele ente – inclusive, das ciências. Mais ainda: ela antecede até mesmo as ontologias ditas "regionais" (da natureza, da história, da idéia...) que fundam os diversos campos de objetividade científica (bem como os campos pré, pós ou extra-científicos).
Este "primado", contudo, não implica uma mera diferença de grau entre a compreensão e os demais modos de acesso ao real, nem uma anterioridade cronológica pura e simples entre a questão do ser e os demais perguntares, como se houvesse uma mera subordinação hierárquica destes àquela. Ao contrário, aponta para uma diferença de 'natureza': enfrentá-la significa desenvolver uma compreensão do sentido do ser, e não uma explicação do significado, como acontece, via de regra e a princípio, com as investigações setoriais, ônticas. Por isto, para o enfrentamento da questão do sentido do ser, há que se decidir, previamente, algo a respeito da relação entre compreender e ser.
Compreender é algo que, para todo mundo (inclusive para Heidegger), é da ordem do sentido, como já se indicou acima. O senso comum resolve a distinção entre sentido e significado, de maneira razoavelmente satisfatória, ao dizer: o significado de uma coisa, no fundo, é a própria coisa expressa de outro modo. Em outras palavras: a 'coisa' é o significado dos diferentes termos ou expressões que a nomeiam ou designam. Assim, o significado de homem pode: ser animal racional (para uns), homo sapiens (para outros), etc e vice-versa, de modo que todas estas expressões significam umas às outras, e todas juntas significam la cosa 'hombre'2.
Já o sentido é visto, habitualmente, como algo que é ou captado ou atribuído à coisa (conforme a perspectiva), mas que é distinto dela: algo que é visto ora como finalidade da coisa ("O Direito é a realidade que possui o sentido de estar a serviço da Idéia da Justiça" – Radbruch), ora como essência (qual é o sentido da Justiça ela mesma?), ora como razão, propósito, fundamento, etc. Esta distinção é tão natural (tão civilizatoriamente espontânea, entenda-se) que dificilmente alguém teria problemas para explicar em que consiste a vida (explicar-lhe os muitos significados), embora raríssimos ousariam dizer-lhe o sentido...
Neste particular, Heidegger não irá reinventar a roda; mas dirá algo sobre o "rodar" que quase nunca (ou talvez nem quase) foi notado. Ele afirma, é verdade, que a filosofia esqueceu a tarefa de compreender o ser, transmudando-a sub-repticiamente na tentativa sucedêna de explícá-lo qual se fora um ente, o que significa dizer: a partir de um ente fundamental. Também é evidente que o tratado Ser e Tempo se dedica (mesmo incompleto quanto ao projeto inicial) a ensaiar uma abordagem para a compreensão do sentido do ser, suprindo essa lacuna já mais que bi-milenar.
Porém, isto não significa que ele irá "desvendar" um sentido oculto do ser, um misterium inefabile nunca antes pensado na história desta república chamada Filosofia, nem exibir triunfalmente o santo graal da ontologia. Ao contrário: ele visará, bem modestamente, elaborar a compreensão do ser que é ontologicamente intrínseca ao homem enquanto ser-aí: este, desde sempre, já compreendeu o ser, embora, a princípio e na maioria das vezes, o tenha feito de forma incipiente, rudimentar, precária, transversal, indireta, repercussiva. Esta compreensão do ser é uma determinação ontológica do ser-aí – e isto abrange todo e qualquer dasein, desde o mais genial metafísico da "era do esquecimento do ser" quanto (talvez) ao louco e ao surdo-mudo-cego (se for possível provar que, em todos ou em alguns casos, eles possuem o modo de ser do Dasein).
É esta "necessidade" constitucional da questão do ser, enquanto abertura interrogativo-compreensiva que perfaz a própria contextura do Dasein, este ente que questiona o ser, que Heidegger denominará (segundo a tradução brasileira) "primado ôntico da questão do ser"3. É justamente porque o ser-aí existe e se move em meio a um questionar-do-ser, mesmo que quase sempre já previamente respondido e providenciado pela tradição, que ele possui a compreensão do ser como uma determinação – determinação que, aliás, ele não denominará categorial, conforme a tradição da lógica predicativa (que explica o ente), mas existencial, como indicação ontológica não-predicativa (que lhe diz não o significado, mas o sentido).
Uma ressalva, porém, precisa ser feita aqui. O questionar-o-ser e o compreender-o-ser não são duas coisas opostas ou sequer distintas, como a dúvida e a certeza, a pergunta e a resposta corriqueiras. No plano ontológico, questionar é justamente estar em meio à abertura da compreensão, é já começar a desenvolvê-la numa compreensão elaborada, isto é, numa interpretação. As respostas históricas são sempre provisórias, são sempre "marcas no caminho", que fazem o pensamento descansar meditativamente na contemplação do panorama, mas que também descortinam novas metas a perlustrar, bem como sendas pelas quais lográ-las. Aquele que não questiona jamais compreenderá autenticamente, mas se moverá sempre em meio a uma compreensão prévia semi-obscurecida (porque não própria e não explícita) legada pela tradição.
Portanto, o primado ôntico da questão do ser (em face de todo outro perguntar pelo ente) significa também o primado ôntico do compreender-o-ser em face de toda explicação do ente. Porém, é preciso observar que a palavra Vorrang não se deixa reduzir somente à acepção de primado, cujo sentido é bem próximo da idéia de preponderância. Basta observar que as traduções norte-americanas (a de Macquarrie & Robinson, e a de Stambaugh) falam em priority, prioridade ou precedência, enquanto a tradução espanhola de Jorge Rivera fala em primacía, primazia ou primeiridade – e talvez nem todas estas opções hermenêuticas esgotem-lhe o sentido.
Mas é possível encontrar um denominador comum em todas estas opções: o de prevalência: prevalência de fato ou realidade (primado), de valor ou estimativa (prioridade), de ordem ou norma (primazia). Prevalência no ser, no valer e no dever-ser: ontológica (já indicada por Heidegger no §3º), axiológica (que se mostra, embora não tematizada explicitamente por Heidegger, na interpretação da impropriedade como ruína ou decadência), e deontológica (implícita na indicação da "necessidade" da elaboração da questão-compreensão do ser como solo para uma auto-assunção própria e autêntica do ser-aí). Vejamos cada uma em detalhe.
A questão do ser suobrdina a pergunta pelo ente, uma vez que este só aparece ou se manifesta no espaço da abertura da clareira (lichtung) e conforme a luminosidade do desvelamento (aletheia): toda vez que um ente é explicado, o ser já foi compreendido – inda que implícita e precariamente. Isto, evidentemente, não impede uma retro-ordenação entre o perguntar pelo ente e o questionar do ser: cada vez que um âmbito de entificação é estratificado\emancipado em campo científico, p.ex., ali fala uma compreensão do ser ainda não interpretada, ou seja, cujas possibilidades projetadas não foram ainda elaboradas.
Do mesmo modo, a questão do ser é mais importante que a pergunta pelo ente justamente por constituir-lhe conditio sine qua non: sem uma resposta prévia (e, portanto, uma questionar prévio), o ser-aí não explica o ente, uma vez que este não se encontra iluminado. Se houve fenômeno, se o ente veio à luz do ser e ao encontro do ser-aí, o ser já foi compreendido. Obviamente, a questão e a resposta prévias são legadas, normalmente, pela tradição; quando um ser-aí se dispõe a questionar o ser, ele já recebeu múltipla e complexa explicação do ente intramundano. Deste modo, o questionar explícito é um retroceder, da explicação ôntica providenciada pela tradição, para o questionar-compreender prévio nela implícito. Todo Dasein que desempenha "pessoalmente" uma compreensão do ser, mesmo que específica a uma certa região ôntica ou domínio objectual, já efetuou uma micro-ontologia negativa, já cumpriu a tarefa da destruição ( ST, §6º ) de um parágrafo da história da ontologia.
Finalmente, a questão do ser é anterior à questão do ente – lógica, ontológica e cronologicamente. A anterioridade lógica equivale ao seu status de condição, supra-indicado. A precedência ontológica significa o seu necessário dar-se antes, na história do ser, uma vez que todo explicar do ente se dá em meio à Lichtung. Cronologicamente, na história do ser-aí, o mesmo se dá: se é certo que o ser-aí herda uma precária resposta ontológica prévia e imanente a cada lote de explicações ônticas que recebe, o fato é que o início de seu existir como ser-aí equivale ao início da sua compreensão do ser. A este respeito, Vigotsky advoga a interessante tese de que o pensamento possui uma fase pré-linguística, o que significa dizer, em termos heideggerianos, que o ser-aí começa a compreender o ser antes de adquirir a linguagem de seu Umwelt, ou de Lebenswelt cultural (em termos husserlianos), na qual já está vigente toda uma ontologia per se, bem como toda uma explicação ôntica consolidada nas categorias lógico-gramaticais do idioma.
Obviamente, a tríplice prevalência da questão do ser co-implica iguais direitos de preferência para o compreender no qual ela desponta e ao qual ela faz florescer. De certa maneira, há uma espécie de quiasma entre compreender e ser: por um lado, só o ser pode vir, genuinamente, a ser compreendido4; por outro lado, somente o compreender perfaz, originariamente, o modo radical de ser do ser-aí5. E talvez este "anel de Moebius" indique, em termos atuais, aquilo que Parmênides tentou nomear ao proferir: tò gàr auto estín noein te kaì einaí: o mesmo é pensar e ser.
1Ser e Tempo, §3°.
2Aliás, sob um certo ponto de vista, o próprio ente "significa" os vocábulos que o designam: quem vê uma pessoa lembra, dentre outras coisas, do seu nome. Isto se dá em virtude de algo que, onticamente, se poderia denominar de " plena semioticidade do real", e que, visto ontologicamente, nada mais é que o estar-imerso (ser-em) do ser-aí humano num mundo em que o discurso já está aí, desde sempre pronunciado.
3No original: Der ontishce Vorrang der Seinsfrage.
4Gadamer chegará a dizer que "ser que pode ser compreendido é linguagem", talvez fechando o círculo ontológico aberto pela famosa expressão da Carta sobre o Humanismo: a linguagem é a casa do Ser. Para ele, linguagem e ser não só coabitam, mas o fazem imbricadamente: um 'habita' o outro. Heidegger não chegará a tanto. A linguagem pode morar e demorar no e junto ao Ser, nas palavras do filósofo (que diz o Ser) e do poeta (que nomeia o Sagrado); mas também pode dela evadir-se (pelo discurso impessoal e pelo falatório desenraizante) e mesmo jamais ingressá-la (na compreensibilidade mediana e sua visceral ambiguidade). Ademais, a própria verdade enquanto alethéia tem por essência a "liberdade" de deixar-se entregar ao que é, e de deixá-lo ser o que é; no entanto, e justamente por isso, a não-verdade lhe co-pertence originariamente, como errância e fuga que perfazem o ser-aí em sua liberdade cotidiana. Porém, não se veja nesta ressalva uma refutação a Gadamer, pois ele falava sob o ponto de vista da Hermenêutica, a qual justamente é o esforço de reter-se na demora pensante que instaura a moradia: ao interpretar genuinamente, o homem faz realmente o ser tornar-se linguagem, num velamento (cuidado) contra o velamento (esquecimento).
5E, neste sentido, a filosofia não é uma possível ocupação do ser-aí, uma atividade ao lado de outras, mas o seu modo de ser fundamental. O ser-aí é o ente que questiona, o ente que, sendo, está em jogo o seu ser. É por esta razão que Heidegger poderá denominar o ser-aí como animal metaphysicum, pois a questão metafísica possui esta radicaliade que referir-se não só à totalidade do ente (à luz do Ser, inda que obscurecendo-o, amiúde) como também à existência daquele que interroga (o ser-aí).
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