O mundo,
enquanto mundo humano, superfície contínua do cosmo descontínuo,
tecido discursivo do real silencioso, impressão cultural da expressão natural, é marcha, é progresso, é
mudança: é devir. Este devir, decerto, é história: uma mixórdia de
fatos e acontecimentos, com alguma lógica e muita falta dela.
Não se
há de negar, aliás, que há uma irreversibilidade da história: o
que acabou, acabou, e muitas conquistas humanas são definitivas, ou
ao menos podem sê-lo. Há muito que escapa, ou se destina a escapar, à transitoriedade e à finitude da existência humana. Mas uma coisa
é certa: a tendência geral da existência do homem e dos povos é
caminhar, inapelavelmente, do surgimento ao fim, da gênese ao
apocalipse, da aurora ao crepúsculo.
O
pensamento filosófico, no seio da realidade deste mundo-fábula
cartesiano, intelectual e corporal (pensante e espacial, espiritual e material, cogitante e extenso), representa a
inversão da marcha habitual do trabalho do pensamento, como pretende Bergson. Mas não se entenda esta inversão como um movimento para
trás, como uma mudança de sentido, direção ou intensidade; neste
caso, trartar-se-ia de uma falsa mudança, pois os opostos relativos
podem assumir o mesmo valor ou encarnar no mesmo ente em momentos diferentes do tempo: o cru de agora
pode ser o cozido de nestante...
Trata-se,
em vez de um recuar, de um inverter: inverter a extensão em
temporalidade, o pensamento em consciência, dirá Bergson. Esta
consciência que dura, esta duração consciente, enquanto evolução
criadora, permitirá que o pensamento aconteça como criação, que
se manifeste como fenômeno no seio do real, em vez de se reduzir a
mero recorte estrutural do real espacial, ao pensamento abstrato de
uma extensão igualmente abstrata. Uma extensão sem pensamento, ou um
pensamento inextenso: o mundo cotidiano é o discurso, o ponto de vista, o isolamento
discursivo, a mente autista. O status quo, o estado de coisas.
Empreendida
aquela inversão, o real não fica de pernas ao ar. Ao contrário, nós nos aproximamos de sua realidade mais verdadeira, da mudança ou
devir, que se disfarça na constância aparente das coisas e dos objetos. Quando Hegel afirma que a filosofia é o mundo às avessas,
portanto, ele não diz com isso que a filosofia seja o esqueleto rígido do
mundo, a síntese abstrata do meta-conhecimento científico positivo,
ou da meta-física de ontem e de hoje, da diafaneidade inapreensível. Nisto ele acertou.
O avesso do mundo é o não-mundo, aquilo que não se afasta de si,
aquilo que não morre, aquilo que não vai ao fim: é o Princípio, é
a Origem, a eterna mudança do ser em ser. O mundo às avessas é o princípio, e o erro de Hegel foi
esquecer de retornar a este princípio criador para querer chegar a
um fim depois do fim, a um meta-fim, a um meta-teleologismo, a uma
finalidade imanente a todas as finalidades (e até mesmo ao acaso
afinalístico). Em vez de apresentar os apocalipses como novas gêneses, ele só soube ver, em cada gênese do ser, um novo começo da "História do Fim". A Filosofia, assim, de alegre amor ao saber, tornar-se-ia o saudoso pranto do ter sabido. Ainda bem que Hegel soube rir...
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