O Fluminense de Feira e a paz mundial



Os torcedores do Fluminense de Feira Futebol Clube, time do interior baiano, numa atitude de extrema revolta, atiraram pipocas aos jogadores, quando estes se dirigiram ao vestiário, após o décimo empate do time em doze jogos. Talvez o tenham feito por não possuírem nada mais contundente para arremessar aos incompetentes desportistas; ou, quiçá, temeram a fatal represália do efetivo policial, que estava próximo. Em que pese a banalidade do motivo ou da forma, o fato é que estes ilustres populares, sem disto se aperceberem, indicaram uma alternativa para a ação política que, se universalizada, resolveria praticamente todos os problemas que atualmente colocam este pequeno globo azul na eterna iminência de uma hecatombe nuclear.

O fato, em si, é absolutamente insignificante: pipocas e futebol. Mas os fatos são, por natureza, insignificantes, ou melhor: as significações não são factuais. Fatos não querem dizer nada, fatos não dizem nada, fatos não significam; no máximo, são significados. Houve o tempo em que um traçado diferente na asa do pavão representava augúrio de grandes tragédias; hoje em dia, nem mesmo os gritantes sinais de guerra nos retiram da ilusão da sociedade capitalista como uma grande colônia de férias.

Mas, voltemos às pipocas. Paralisações são sempre muito danosas; passeatas convulsionam um trânsito já caótico e violento por suas próprias forças; o voto de protesto é um deixa-estar que facilita aqueles que estão na peleja em causa própria. Numa palavra, todas as manifestações práticas do pensamento político têm lá a sua quota de nocividade social intrínseca, apesar das inumeráveis e honrosas justificativas éticas às quais endosso plenamente.

Contudo, uma análise política profunda e circunstanciada nos mostrará que pipocas são armas meta-políticas de eficácia transcendental. Brancas como a pomba, elas são antes armas da paz do que da guerra, e por essa razão vão além de política. A política, disse Foucault, é a continuação da guerra por outros modos. A guerra entre os homens, por sua vez, é um prolongamento tribal da luta do indivíduo contra a morte e pela vida. Paralisações, panfletagens, debates acalorados e coisas do tipo são outras tantas sublimações da guerra, são ações políticas. 

O esporte também é uma sublimação da guerra. Através de um ritual formalizado, com regras convencionais e aceites pelos competidores, chega-se a um resultado final, a uma vitória simbólica que não extermina o adversário. Até aí tudo bem. Mas, neste mundo ao avesso, o esporte simplesmente se tornou mais um campo de batalha. A violência dentro e fora dos estádios, ginásios e circuitos é coisa que dispensa comentários. Mas há mais.

Se o esporte já não substitui a violência, agora é a violência quem se transforma em esporte. Um dos mais avançados ramos da matemática, nos dias de hoje, se chama, justamente, Teoria dos Jogos. Nela, estudam-se todos os possíveis desdobramentos de decisões em situações de conflito, como no famoso “dilema do prisioneiro”. Não demorou pra que os Estados, sobretudo os líderes dos antigos blocos capitalista e socialista, utilizassem a teoria para tentar antecipar os passos políticos do oponente. Porém, já antes disto (desde sempre, aliás), generais calculavam suas movimentações, ataques e recuos como lances numa partida de xadrez, inclusive determinando de antemão o número de jovens vidas militares a serem sacrificadas nestas estratégias de gabinete.

Eis onde entram as pipocas. Para desagravar este mundo sem conserto, a solução mais indicada é começar pelo mais simples. Diziam os romanos: “rindo, corrigem-se os costumes”. A paz sorri, e quem sabe rir e fazer rir é um pacificador por definição. Do sublime ao ridículo há um só passo, já dizia Molière; na contramão, ouso acrescentar, a distância é a mesma. Pipocas não machucam, não danificam equipamentos públicos, não congestionam o fluxo de pessoas, não sonorizam ruidosamente arredores de escolas e hospitais. Pipocas não deixam mágoas, como palavras injuriosas soltas ao vento no calor da hora. A serenidade imperturbável de quem não abusa de suas razões; de quem calma, mas insistentemente impõe seus argumentos na forma silenciosa do protesto simbólico, uma tal serenidade é capaz de quebrar grandes cadeias de violência. 

Quem sabe calar está pronto para o diálogo, e é do diálogo que nasce a ação conjunta, essência e fim da Democracia. A violência resulta sempre da incapacidade de ouvir e de falar. Aquele que agride grita com os seus atos, aquele que grita agride com suas palavras. Que reaprendamos a arte de não levar a sério tudo o que pode ser remediado ou desfeito, bem como aqueloutra, a de evitar atos irremediáveis. Com Machado, digamos: ao vencedor, as batatas. E acrescentemos, por conta: ao perdedor, as pipocas.

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