A
tese central do capítulo 1 de Vigiar e Punir opta pela segunda
alternativa proposta pela pergunta acima. Para Foucault, por trás da
inegável mudança dos métodos de punir, nos quais se nota certa
humanização e abrandamento, se oculta uma mutação ainda mais
profunda: a do alvo da punição. Este alvo, ele diz, é a "alma",
o psíquico. Deixa de ser o corpo.
Mas,
o que é esta alma que o século XIX passa a perseguir criminalmente?
Foucault diz de maneira lapidar: punem-se as agressões, mas,
por meio delas, as agressividades.
É o sujeito que se pune. Um sujeito que não consiste em seu corpo,
submetido às mesmas injunções naturais de todos os outros corpos,
que sente dor, frio e fome do mesmo jeito, que morre segundo as
mesmas leis.
A
partir de então, julga-se o objetivo, o resultado social reprovável,
o fato criminoso, a maliginidade materializada, como sempre se
julgou. Mas, ao lado dela, julgam-se ''as anomalias, paixões,
instintos, enfermidades, hereditariedades, inadaptações, efeitos de
meio ambiente". O sujeito é o portador de todas estas marcas
individualizantes, é um exemplar único, um arranjo irrepetível
destas e de muitas outras características.
Subjetividades,
individualidades, em especial as que se julga criminosas
desde então, se definem por
esta complexa articulação de agressividades, impulsos, desejos,
perversões, violações.
Tudo
isto escapa ao anterior ideal de objetividade do direito, em especial
do rigor específico com que se pretendia reformular o feroz direito
criminal do século XVII, anterior ao movimento humanista. Aliás,
Foucault argumenta que a própria idéia de circunstâncias
atenuantes (e podemos estender a todas as categorias do mesmo tipo)
servem para introduzir na apreciação elementos que não são
passíveis de estrita codificação jurídica. Afinal, tomando por
exemplo o direito brasileiro atual, o que é uma "violenta
emoção em resposta a uma injusta agressão da vítima"? O que
é um motivo torpe?
Portanto,
ainda que se possa discordar do diagnóstico taxativo de Foucault,
que secundariza completamente o valor do movimento humanista e do
abrandamento das penas, o fato é que, sem a mudança na concepção
de crimininoso, sem a idéia de uma subjetividade punível, as
transformações verificadas no direito penal não sucederiam da
forma como a história registrou.
Nenhum comentário:
Postar um comentário