1. Introdução
O
homem, diziam os antigos, é um animal
rationale, uma espécie viva que se diferencia pela posse exclusiva da
Razão. Na acepção original do termo, proveniente do grego, animal racional é zoon logikon, o que não significa meramente
“animal lógico”, mas ente que partilha
ou participa do Logos. Logos, em latim Verbo, é um termo polissêmico, que não significa apenas Razão, mas
também Palavra, Linguagem, Pensamento ou Discurso. A idéia contida nesta
asserção, de autoria do grande Aristóteles, indica que o Logos não é uma
faculdade ou função psíquica do elemento humano individual, mas uma certa
abertura para a realidade, coextensiva a todo o genus humanum, e mais do que isto: uma abertura que não se
manifesta para o indivíduo em si mesmo, mas apenas na medida em que ele está em
comunidade com os seus iguais. É o próprio Aristóteles quem arremata,
concludente: o homem é animal racional somente porque é um animal político.
E
qual a necessidade de arrolar estas remotas concepções de uma civilização
perdida na pesquisa dos fundamentos de uma disciplina eminente técnica e
formal, inda mais pelo seu objeto – o comércio -, precisamente o fenômeno
fundamental de nosso mundo globalizado? A resposta se encontra na indicação de
que, ali onde repousam as fontes de nossa Civilização, talvez se encontrem os
esquemas das atuais estruturas e a direção do curso de eventos que desembocou
no mundo tal qual ele é, e em nós tais quais somos.
A
partilha do Logos garante aos homens a oportunidade e a responsabilidade
de guiarem a si mesmos, mas também os
coloca diante de uma exigência ineliminável: a de que esta posse individual se
realize em e através de uma comunhão com outros homens, em suma, de que esta
partilha seja um eterno com-partilhar do Logos, em grego dia-logos.
Mas
diálogo não seria a mera conversação inter-individual, antítese da verdadeira ação
coletiva? E o circunlóquio verborrágico, a que tanto somos dados, não é
justamente uma subtração ociosa à atividade humana vital e produtiva? Assim o
seria, de fato, se o homem fosse realmente um ser autônomo, solitário, e que se
furtasse à sua individualidade laboriosa para momentos esporádicos de inerte
distração verbal. Mas o homem não simplesmente dialoga ou entretém conversações
porque é um ser individual, ao contrário: foi justamente por se tratar de um
ser-em-diálogo que o homem pôde desenvolver a linguagem articulada para fins de
comunicação pessoal. E este existir dialogal, este ser-em-diálogo, se manifesta
em toda a dimensão da práxis humana, da qual duas manifestações fundamentais
são justamente o comércio ou negotium
(negação do ócio), e o direito enquanto lei e jurisdição, isto é, legere e juris dictio, leitura e dicção
do Justo.
Seria
extenso e mesmo desnecessário realizar aqui um inventário das mais diversas
concepções dos fenômenos jurídicos e comerciais. Daí a opção por uma indicação
do caráter fundamental de ambos e de sua comum raiz promanada dos recônditos da
natureza humana. O presente trabalho tem por objetivo apontar algumas das
etapas históricas na evolução dos dois fenômenos em questão, bem como sua
confluência no fenômeno específico da regulação jurídica comercial, tal qual
hoje se nos apresenta.
2. Formação e fundamentos do direito comercial
O
comércio pode ser conceituado, em uma primeira apreensão e em sua acepção
moderna, como a atividade de troca de produtos e serviços entre si, ou destes
por valores. Esta noção é coerente com a definição vigente da atividade
econômica em geral, compreendida como a arte de lidar com necessidades
crescentes e recursos decrescentes, na qual a troca é, efetivamente, o fenômeno
econômico fundamental.
Mas
nem sempre foi assim. Em momentos iniciais da civilização humana, a satisfação
das necessidades não era realizada através do intercâmbio de produtos, uma vez
que não havia sequer produção. Em vez disto, os primeiros homens, segundo o
consenso dos estudiosos, praticavam a pura e simples alocação direta dos
recursos disponíveis em estado natural. A própria atividade de caça e pesca,
embora já presente nos nômades, surgiu após o desenvolvimento de habilidades
que compensavam a natural fragilidade do homem em relação à maioria dos
animais. Neste momento, não havia comércio nem produção.
Com
o estabelecimento de uma relação de posse e guarda do território, ou seja, com
o advento do sedentarismo, o homem pôde finalmente estabelecer relações
constantes com o meio circundante. A infinita mobilidade do homem, traço
decisivo na sua constituição diferencial em relação aos demais primatas
superiores, ainda fixos em seus habitats, precisava agora ceder a uma nova
fixação residencial, pois não se tratava mais do animal humano, mas da formação
das primeiras comunidades. A capacidade de adaptação humana se irradiou de tal
forma que ele pôde se estabelecer por
toda a parte. E em todas elas, ele descobriu ou inventou um conjunto de
práticas capazes de lidar eficazmente com o ambiente circundante, no sentido de
obter bens de subsistência: é o começo da agricultura, da criação de animais e
da fabricação de ferramentas. Surge então o trabalho, e a primeira forma de
divisão deste era fundamentalmente sexual e etária.
Neste
momento, em função do tronco ancestral comum, as comunidades era regidas pelo
sistema patriarcal, que garantia formas mais ou menos estáveis de autoridade.
Contudo, o profundo temor reverencial dos homens diante das manifestações da
natureza, e sua experiência intensa do sagrado se cristalizavam em tabus, dos
quais o mais importante foi o tabu do incesto, estabelecido em função da
constatação de que as uniões sexuais intra-familiares produziam freqüentes
aberrações, consideradas punição divina. Curiosamente, eis que surge a primeira
forma de comércio: mulheres em idade fértil eram cedidas a famílias de outros clãs, primeiro em troca de
alimentos, em seguida por outras mulheres, o que ocasionou a progressiva
aglutinação de clãs em tribos, e a formação de grupos étnicos. Estes grupos
conheceram as primeiras crises políticas, que foram resolvidas pelo advento ou
do critério hereditário, ou pelo governo dos sacerdotes. E conhecem a primeira
forma de comércio, com os intercâmbios internos de produtos, em virtude de uma
divisão familiar do trabalho, em que as famílias eram, a um só tempo, unidades
de produção e consumo.
Com
o crescimento populacional, e a
conseqüente necessidade de expansão territorial, as primeiras sociedades
começaram a estabelecer relações ora de disputa bélica, ora de caráter
cooperativo. As primeiras ensejaram a formação de uma classe militar, incumbida
da proteção e conquista, que associada com o poder político, demandou novas
formas de autoridade. As segundas constituíram manifestações rudimentares de
comércio, baseadas no escambo, e na troca dos excedentes, propociadas com o
desenvolvimento das técnicas, e com elas, de classes profissionais, devotadas a
labores específicos que passaram a exceder a demanda interna destas sociedades.
É
justamente aqui que começa a grande curva da História. Estes profissionais
autônomos, denominados artesãos, começaram a produzir toda a sorte de bens
duráveis, de cuja troca começaram a obter subsistência. Surgem as primeiras
artes liberais como medicina, engenharia, agrimensura. Isto reformula
profundamente toda a estrutura das civilizações, que transigem da forma agropastoril,
para a forma de grandes Civilizações Comerciais. Estas começaram a manter
grandes intercâmbios regulares, patrocinados pelo poder político. Vale
ressaltar que os empreendimentos marítimos, ou a transportação terrestre de
mercadorias só era possível num grande esforço coletivo, de maneira que se pode
afirmar, com segurança, que o comércio foi internacional, antes de ser
nacional, público antes de ser privado, político, antes de ser econômico.
Embora
isto possa ser verificado em todas as grandes Civilizações do período Axial
(séculos VII e VI A.C), os gregos foram os que melhor articularam este
processo, e o desenvolveram na teoria e na prática. A sociedade grega era
dividida em duas esferas fundamentais, privada e pública, designadas
respectivamente como oikos e polis,
casa e comunidade. A oikos,era a
esfera da privação, da carência e da falta de liberdade, na qual o homem agia
para dar conta de suas necessidades. A oikos era composta de agrupamentos
familiares, chefiados pelo pater famílias,
e produzia os recursos de sua própria subsistência. Nela imperava a autoridade
patriarcal, sem vez para mulheres, dependentes e escravos.
Já
a polis grega, a comunidade política,
era entendida como a esfera da liberdade, ou seja, aquela em que o homem não
mais agia pela pressão das necessidades, e sim por fins decididos em conjunto,
pela comunidade. Participavam da polis
justamente os pater famílias, que
eram os homens livres chefes de família. As decisões eram tomadas em colegiado,
tanto na legislação, quanto nos julgamentos e na administração.
Nesta
fase áurea da Democracia grega, o mercado pertencia aa esfera pública. Os pater famílias se reuniam em grandes
empreendimentos públicos de comércio com outros povos, que eram financiados com
tributos sobre a produção familiar. Esta estrutura sofreu profunda alteração
com o domínio da Grécia por Alexandre Magno, mas vale ressaltar a continuidade
do caráter preponderantemente internacional e estatal do fenômeno comercial de
então. É justamente aí que começa a primeira elaboração jurídica, na forma de
tratados ou ajustes de comércio, através de mandatários e signatários, e a
primeira forma de monetarização, pela adoção de moeda cunhada, que embora já
praticada internamente há algum tempo em certos povos, passou a constituir elo
de ligação internacional, através da genial percepção de Alexandre que a viu
como meio de unificação política e econômica. Os gregos chegam a ligar, pelo
comércio e pela moeda, cidades distantes como Atenas, Antioquia e a
recém-fundada Alexandria.
É
justamente com a adoção da moeda que o comércio passa a funcionar como
atividade normal no contexto interno da sociedade. Entretanto, no Império
Romano, que sucedeu o Macedônico, ainda era praticado pelos próprios produtores,
que expunham seu artesanato em locais públicos ou em feiras periódicas. O jus civile romano não tratava de regras
comerciais, mas apenas dos crimes civis praticáveis por estes profissionais,
como roubo, furto, etc. Por não haver estabelecimentos comerciais propriamente
ditos, as questões eram resolvidas com base jus
pretorium, isto é, na jurisprudência formada pelas decisões dos questores,
e pelo jus gentium: direito natural e
equidade.
Com
o declínio do Império Romano, tem início a Idade Média, auge da Civilização
Cristã, que coincide com uma relativo retrocesso no desenvolvimento político e
econômico do ocidente. As unidades territoriais se repartem em pequenos feudos,
e se articula uma densa rede de relações de suserania e vassalagem entre tais
territórios, mas a unidade política relevante se reduzia à presença do clero na
vida secular. Os feudos eram estruturas latifundiárias pautada num modo de
produção servillista, no qual camponeses cultivavam a terra para subsistência
deles próprios e do senhor feudal, em troca de proteção e abrigo. A única forma
de regulação jurídica era o direito canônico, elaborado pelos doutores da
Igreja, mas se referências específica ao comércio, que inexistia. O único
fenômeno assemelhado a tal que ocorreu nesta época fora o advento dos
mercadores ambulantes, viajantes em geral mouros e norte-africanos, que traziam
especiarias do Oriente para os senhores feudais.
Com
a baixa Idade média, vão se formando, aos poucos, núcleos de comércio e torno
dos castelos e mosteiros; paralelamente, começam a renascer cidades antigas,
muitas das quais em virtude do grande fluxo de mercadores, constituindo-se em
entroncamentos geográficos, e pouco a pouco, entrepostos comerciais. Nestas
cidades, começam a renascer as classes profissionais de homens livres, que
inauguram os primeiros estabelecimentos comerciais do ocidente, chefiados por
corporações de artesãos, aos quais se juntam grandes armazéns, silos e
empórios. Fatos Políticos importante se ligam a tais processos, como a expansão
e queda do império bizantino, e a tomada de Constantinopla pelos turcos
otomanos.
Mais
alguns séculos, e nos anos ‘quinhentos’, há um vertiginoso renascimento
cultural, propiciado fundamentalmente pelo renascimento urbano, que nada mais é
que renascimento comercial. Este processo avança para abem além de uma simples
retomada, e ganha o status de autêntica Revolução Comercial e marítima, na qual
os Estados europeus, recém-reorganizados, partem em busca de novas rotas
comerciais com o Oriente, para evitar a dependência de constantes e frágeis
negociações com os muçulmanos. Construção de estradas, portos, grandes
navegações, e descoberta de novos continentes são consagrações de todo este
horizonte que se descortina.
No
interior das cidades, o comércio nascente ganha força através das corporações
de ofício, entidades profissionais ligadas entre se por Ligas chefiadas por
cônsules capazes de dirimir conflitos, e dotadas de um conjunto de práticas
consuetudinárias que ganham status cogente. Além disso, o mecenato artístico e
arquitetônico erige-se em fonte de primitivas relações creditícias, patronais e
contratuais, envolvendo o comércio em grande malha regulatória que chega a ser
consignada em repertórios normativos como os ‘Rolos de Olérón’, na França, os
“Constitudine” em Gênova, e em órgãos jurisdicionais como o “Consulado do Mar”,
em Barcelona. Some-se a isto o surgimento de grandes mercados mundiais em
Veneza e Florença. Ligas como a de Hamsa, na atual Alemanha, uniam várias cidades
entre si. E tratados comerciais, como “As Sete Partidas”, estabeleciam, dentre
outras coisas, a paz comercial, e a inviolabilidade de pessoas ou bens de
pessoas em viagens de comércio, independentemente de nacionalidade ou religião.
No século seguintes, surgem as primeiras grandes normatizações estatais, como
as “Ordenações Colbertinas”, na França em 1673; e as Ordenações Filipinas
portuguesas, que incluíram matéria comercial.
Associe-se
a estes fatores mais dois séculos de revolução científica jamais vista até
então, e o surgimento do Estado Moderno, a partir do tratado de Versalhes em
1648, a consolidação das Monarquias absolutas, a doutrina mercantilista, e
veremos todo este processo culminar na Revolução Industrial, iniciada na
Inglaterra em torno de 1750. Com ela, uma profunda mutação social, política e
econômica tem início, resumível na passagem do capitalismo comercial para o
industrial. Neste, destaca-se o surgimento de uma capacidade produtiva
inimaginável, e com ela, as primeiras crises comerciais de superprodução, e de
subconsumo. Os problemas jurídicos associados à industria estão mais afeitos à
regulação econômica da concorrência, e a questões trabalhistas, mas a industrialização serviu para consolidar o
comércio como principal função urbana.
Mas
o primeiro grande Código a tratar de matéria comercial surgiu com a vitória da
Revolução Francesa em 1789, e com a disseminação de seus ideário liberal e
burguês. A extinção dos privilégios de classe, e a plena consolidação da
igualdade jurídica formal e da livre iniciativa terão acolhimento no Código Napoleônico
de 1804, e no Código Comercial de 1807, o primeiro a tratar dos atos de
comércio, substituindo com um enfoque objetivo o escopo subjetivista do direito
consuetudinário praticado desde as corporações de ofício.
No
Brasil Colonial, que já se aplicavam as ordenações portuguesas, com a chegada
da família real em 1808, deu-se novo impulso ao direito comercial, com a
criação da Junta de Comércio e do Banco do Brasil. Em 1823, uma lei determinou
que seriam aplicadas, no Império Brasileiro, como fontes subsidiárias do
direito comercial a legislação das nações cristãs, no que se incorporou ao
arsenal legislativo brasileiro a Lei da Boa razão, de 1769, o código Comercial
francês de 1807, o espanhol de 1829, e o português de 1833.
Em
1832, a regência Brasileira constituiu uma comissão de quatro especialistas
para a elaboração de um projeto de código comercial, o qual foi concluído em
1834, e convertido em lei em 1850. O Código Comercial brasileiro de 1850 era
composto de três partes: a primeira, referente ao comércio em geral (artigos 1º
a 455), ao comércio marítimo (artigos 456 a 796), e às quebras (arts. 797 a
913). Possuía um único anexo, alusivo à administração da justiça nas causas e
negócios comerciais. E recebeu duas regulamentações no mesmo ano (dec. 737 e
738), alusivas a normas processuais, e à constituição de um tribunal de
comércio.
Os
tribunais de comércio tiveram vida curta, sendo extintos em 1875. E a terceira parte do Código foi sendo
substituída por lei especial(n° 2044 de 1908), que tratava, além de direito
cambiário, de concordata, falência, e sobre sociedades limitada e anônima. E a
terceira parte do código fora finalmente concluída pela lei 7661 de 1945,
vigente até o advento da nova lei de falências, em 2005.
A
primeira parte do código manteve-se vigente, com alterações devidas a inovações
em matéria societária, cambial e sobre mercado de ações, veio a ser substituída
pelo Novo Código Civil, de 2002, que unificou o direito civil e o empresarial,
conforme sugestões já empreendidas por teóricos do século XIX, dentre eles
Teixeira de Freitas, e anteriormente acolhidas pela doutrina italiana, e por
legislações européias, primacialmente.
A
única parte ainda vigente do Código Comercial de 1850 é a que se refere ao
comércio marítimo. Paradoxalmente, foi a primeira que se desenvolveu, já com as
primeiras grandes civilizações, e é a que remanesce até hoje, em que pese as
profundas pelas quais tem passado o comércio internacional nestes últimos 150
anos.
No
direito comercial inaugurado definitivamente a partir do novo código civil
incorporou a moderna teoria da empresa, para a qual é exercício de empresa toda
atividade profissional de pessoa jurídica, com organização e tecnologia, com a finalidade
de produção ou circulação de bens e serviços, considerando-se organização a
presença dos quatro fatores de produção (mão de obra, matéria prima, capital e
tecnologia).
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