Heidegger inicia sua exposição prévia sobre a tonalidade afetiva
fundamental (TA) alertando que o despertar de uma TA não é uma
constatação de um ser simplesmente dado, mas um deixar o que dorme
vir a estar acordado. Qual a diferença entre os dois?
Primeiro, note-se os substantivos: não uma constatação
(substantivo abstrato), mais um deixar (substantivo abstrato
deverbal). Observe-se, agora, os verbos correlativos:
Constata-se uma coisa, um fato, uma informação, um resultado. Mas
não se constata um homem. Pode-se até constatar o estado, situação,
fato ou informação relativos a ele, mas não o homem mesmo.
Deixa-se um homem. Mais exatamente, deixa-se o homem ensejar algo
específico do homem, algo não meramente constatável: um
sentimento, uma ação, uma conduta. Deixa-se (ou tenta-se deixar)
amar. Deixa-se fazer ou não fazer, ir ou ficar. Deixa-se sonhar. Nem
mesmo o animal é deixado: há apenas um não-tolher, quando nos
omitimos de intervir a que ele manifeste reações que só
impropriamente se pode denominar de ações.
Deixa-se um homem acordar. Mas também, deixa-se algo que está no
homem acordar.
Uma TA é algo que se deixa ou não se deixa acordar. Não é algo
que meramente se constata. Quem crê que constatou em si mesmo uma
certa TA muito provavelmente fantasiou uma representação psíquica
de uma TA, pois ela não é constatada passivamente. Imagine-se
alguém constatando friamente: “estou excitado!” ou “estou
angustiado!”. Heidegger adiante esclarecerá esta noção,
alertando que uma TA nos afina, nos ajusta, nos sintoniza – ou, na
forma mais precisa da tradução brasileira, nos “traspassa
afinadoramente”.
Quando uma TA desperta, portanto, ela nos toma de assalto – mesmo
que este assalto não seja à mão armada, mesmo que ele não irrompa
retumbantemente em espasmos e estertores, mesmo que ele pareça mais
uma furto inadvertido, um chegar ou ir sorrateiros.
A explicação desta especificidade da TA se encontra à luz da
fenomenologia de Ser e Tempo. Nele, Heidegger adverte que
somente o “ser simplesmente dado” (Vorhandenheit), isto é, as
coisas que meramente estão aí, no mundo, é que podem ser
constatadas ou não constatadas. O homem, enquanto ser-aí
(Dasein), bem como os fenômenos humanos, que também possuem o
modo de ser do Dasein, ultrapassam esta imediateidade do ente
intramundano simplesmente dado, e são acessados de outras maneiras.
A maneira de acessar uma TA, por exemplo, será este deixar
despertar, deixar vir a estar desperto.
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