O §17 de Conceitos Fundamentais da Metafísica possui um
título extenso e um pouco abstruso: “Caracterização prévia do
fenômeno da tonalidade afetiva: tonalidade afetiva enquanto o modo
fundamental do ser aí, enquanto o que dota o ser-aí de consistência
e possibilidade. O Despertar da tonalidade afetiva enquanto apreensão
do ser-aí enquanto ser-aí. Nele, apresentam-se trés teses a
reclamar exposição sucessiva.
O que há em comum com as três teses? Há o fato de que todas elas
aparecem já numa caracterização prévia do fenômeno das TA. Isto
significa que não é preciso esperar por uma análise temática mais
detalhada, mais explícita, para que se perceba estas propriedades
fundamentais das TA.
Em primeiro lugar: TA enquanto o modo fundamental do ser-aí. Algumas
consequências se implicam desta afirmação, logo de cara. Primeiro:
há outros modos do ser-aí. Segundo: a TA é fundamental em relação
a eles. Como compreender esta tese?
Heidegger inicia por um exemplo: um homem que se tornou triste. O que
acontece com ele, e em relação a nós? Em si mesmo, ele é o mesmo,
permanece onticamente inalterado. Ontologicamente, porém, ele se
torna praticamente inacessível – tanto a nós, quanto, inclusive,
a si mesmo. Mais ainda: se torna inacessível mesmo na presença mais
frequente, na convivência mais assídua.
E o que acontece conosco, diante da sua inacessibilidade? Ele nos
traz para seu modo ou tom, sem que entristeçamos necessariamente.
Nosso co-existir com ele, nosso ser-com (Mitsein), se modifica
inteiramente, mesmo que permaneçamos na alegria mais esfuziante.
Por fim: o que acontece com o mundo, enquanto horizonte ontológico
no qual ele está lançado? A tristeza é algo apenas subjetivo,
pessoal, interno, psíquico ou anímico? Não afeta ou modifica em
nada a sua constituição fundamental de ser-no-mundo?
Modifica sim. Segundo Heidegger, a tristeza não está na alma dele,
nem na nossa. Está sobre todas as coisas, no mundo aberto para
aquele homem.
Dito isto, se esclarece algo primordial sobre a TA: ela não é um
ente que advém na alma como vivência (ainda que suscite ou seja
acompanhada por uma série delas, inevitavelmente). Ela não é o
quid vivido, mas o como de nosso ser-aí, o seu modo
fundamental. O tradutor clarifica: ela é 'a totalidade dos
acontecimentos', o 'astral'.
Não sendo um ente que advém na alma, a TA não é um simplesmente
dado, como já se disse no texto anterior. Não consiste em
manifestações paralelas (prazeres, dores, lembranças) que se
evolam continuamente, mas aquilo que determina, desde o princípio, a
convivência.
Diz Heidegger: a TA é um jeito do ser-aí e do ser-fora. E
aduz uma alegoria para elucidar: jeito, mas não como um padrão ou
forma modal, mas como uma melodia, que não paira sobre o
Dasein ou ser-aí, mas que lhe fornece o tom, a afina, e diz o
modo e o como de seu ser.
Ao contrário da vivência, sempre efêmera e fugidia, ela é, por
tanto, um jeito originário, no qual todo ser-aí é como ele
é, que lhe dá consistência (ele é desse jeito) e possibilidade
(ele tem diante de si tais e tais possibilidades projetadas porque
ele é desse jeito).
Este como ou jeito não é efeito do eu ou manifestação do
nosso pensar, agir ou não agir, mas o pressuposto ou meio no
qual primeiramente o pensar acontece e a partir do qual a ação
transcorre.
Todavia, pode parecer que nem sempre estamos afinados, tomados por
uma TA. Isto, porém, é uma aparência. As TA que não atentamos de
forma alguma, e que observamos ainda menos, são as que nos afinam de
tal modo que isto se dá como se nenhuma TA estivesse aí, como se
não estivéssemos absolutamente afinados. São as mais poderosas.
De início e na maioria das vezes, só certas TA nos tocam, em regra,
as que irrompem rumo a extremos: alegria, tristeza. Menos
apreensíveis são um certo temor, ou uma satisfação que se espraia
longamente. E, sobretudo, o não-estar-afinado (hoje diríamos: algo
próximo do blasè), que não é nem bom humor nem mau humor,
mas que não é indiferença, é das mais tenazes, embora (por isto
mesmo) das mais difíceis de apreender.
As TA não surgem ou desaparecem num suposto espaço vazio prévio da
alma: elas se sucedem. O ser-aí nunca está desprovido de TA, pois
que esta é-lhe o modo fundamental. Todavia, como só costumamos
notá-las no rompante de seu aparecer ostensivo, a tomamos como
eventos que vêm e que se dissipam.
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