Einstein e a autonomia epistemológica do sistema de referência

Por Thiago El-Chami


O conhecimento científico havia progredido vertiginosamente no século XIX. No campo da fisica, em particular, a unificação dos fenômenos da eletricidade e do magnetismo numa única teoria, empreendida por James Maxwell, entusiasmou a comunidade científica, fazendo-a acreditar-se próxima da solução final do mistério do Universo. A confiança chegara a ponto de Lord Kelvin, no ano de 1900, traçando os rumos da ciência para o século que se iniciava, afirmar: "não há nada de novo a ser descoberto na física... o que resta é medição cada vez mais precisa"i.

Esta predição não se confirmou. Sem pretender escrutinar as implicações e o alcance da revolução empreendida por Albert Einstein, importa aqui tão-somente verificar em que ponto ele desferiu o golpe mortal à velha visão de mundo, e em que medida isto tem a ver com o conceito de sistema. A resposta para isto se encontra na idéia de sistema de referência. Ele representa a perspectiva segundo a qual sucedem-se os fenômenos diante de um observador qualquer.

A importância do sistema de referência está ligada à concepção de movimento relativo. Galileu já havia demonstrado que havendo velocidade relativa entre em objeto e outro, era indiferente atribuir a um ou outro o deslocamento. Esta inferência, embora correta, era contraditada pelo senso comum, que ainda considerava que a embarcação sempre se desloca em relação ao porto, e nunca o contrário; que a maçã de Newton despenca em direção ao centro da Terra, e não que este se elevava para encontrá-la. E a justificativa para isto residia no fato de que, sob a multiplicidade de referenciais empíricos possíveis, havia um espaço e um tempo absolutos, aos quais poderiam ser referidos os fenômenos para solução de dilemas desta natureza.

Dentro deste quadro, todos os fenômenos no universo possuiriam diferentes velocidades relativas para cada referencial sobre o qual estivesse sendo observado. Assim, enquanto duas pessoas sentadas num trem em movimento estão em repouso relativo uma à outra, ambas estão se afastando, na velocidade do trem, daqueles que ficaram na estação.

Entretanto, uma experiência perturbadora, realizada pelos cientistas Michelson e Moreley em 1887, demonstrou que a luz se movia com velocidade igual independentemente da velocidade relativa do observador. Em outras palavras, ela não se revelava mais rápida para alguém que se movesse em sua direção, nem mais lenta em relação a quem dela se afastasse.

Diante disto, Einstein resolveu verificar o que aconteceria na hipótese da adoção da velocidade da luz como constante universalii. E concluiu que isto implicava na quebra do referencial espaço-temporal absoluto de Newton, de modo que dois eventos que são simultâneos a um observador, se mostrariam sucessivos a outro. Em outras palavras, as características de um sistema de referência determinam em grande parte a observação do universo que ele empreenderáiii.

O mérito de Einstein consistiu em ter abolido o sistema de referência universal. Isto significa que cada observador, em vez de um elemento daqueloutro sistema, passa a consituir, ele próprio, um sistema de referência. Esta espécie de "democracia cósmica" em vez de culminar num relativismo cético, abre campo para um interacionismo dinâmico, uma vez que os sistemas de referência podem sincronizar-se entre si, mantendo ainda assim a sua individualidade.



i ISAACSON, Walter. Einstein: sua vida, seu universo. Trad. Celso Nogueira et all. São Paulo; Companhia das Letras, 2007, p. 107. Toda a argumentação aqui desenvolvida toma por base esta obra, razão pela qual remete-se a ela, especialmente para o cap. 6, pp. 124 e ss.


ii "O postulado fundamental de Einstein na teoria da relatividade... declarava que as leis da ciência deveriam ser as mesmas para todos os observadores que estivessem se movimentando livremente" (HAWKING e MLODINOW, 2005, p. 41)


iii Na realidade, a teoria da relatividade não abole o referencial absoluto, apenas o modifica. Nunca um filho nascerá antes da mãe, nem o fruto aparecerá antes da flor. Não obstante, a depender da situação do observador, duas crianças nascidas em planetas diferentes poderão ter nascido no mesmo dia (no tempo de quem observa), para um segundo em dias diversos, e uma após a morte da outra para um terceiro.

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