A filosofia hegeliana representa o período em que a racionalidade
dedutiva e fechada do pensamento filosófico e científico encontram
a abertura e a mutabilidade da História. A afirmação da dialética
enquanto processo imanente à realidade mostra que a totalidade só
se constrói no tempo.
O sistema, nessa perspectiva, não é um conjunto de relações dadas
a priori, como em Kant, pois deriva do desenvolvimento das
potencialidades inerentes ao processus no qual as contradições
da realidade se manifestam.
Em outras palavras, podemos dizer que o sistema em Kant é analítico,
partindo dos princípios gerais e dividindo-se até o concreto; em
Hegel, ao contrário, ele é sintético, pois constitui a etapa final
de uma evolução do concreto ao universal por meio da unificação
das relações que brotam entre os fatos. Assim, a dialética “mostra
o caráter processual de toda a realidadei”.
A radicalidade da mudança da concepção kantiana para a hegeliana
se vê não apenas nas premissas do conceito de sistema, mas
sobretudo em suas conseqüências e aplicações. Se em Kant a
metafísica consiste no “inventário uniformemente organizado da
razão pura"ii,
de modo que o sistema preexiste ao processo cognoscitivo, para Hegel
esta tentativa de sistematização formal do conhecimento, este
conhecer antes mesmo de conhecer, equivale ao "sábio propósito
daquele escolástico de aprender a nadar antes de se aventurar à
água"iii.
Não
obstante, no célebre Prefácio à Fenomenologia do Espírito, ele
assevera: "a figura na qual a verdade existe somente pode ser o
Sistema Científico"iv.
Mais adiante, porém, ele adverte: "o verdadeiro é o todo. Mas
o todo é somente a essência que atinge a completitude por meio do
seu desenvolvimento"v.
Este caráter sistêmico da verdade em Hegel advém do
fato de ela só alcançar sua plenitude no Conceito. Para o filósofo
de Iena, o Conceito não é a determinação fixa de propriedades
estanques de uma coisa-objeto, mas a expressão do auto-movimento de
uma substância que, em si mesma, é Sujeito.
Trata-se de uma idéia bastante aparentada
ao conceito de autopoiesis da
biologia e da sociologia modernas, uma
vez que não implica num automatismo de tipo cibernético, mas numa
auto-criação histórica, com a diferença de que o Conceito, em
Hegel, é a plena efetivação de um processo que percorreu várias
figuras (Gestalts) e
momentos, da pré-figuração germinal à plena expressão orgânica,
ao passo que o sistema autopoiético, ao menos na concepção
clássica, reitera-se circularmente no tempo, com modificações
estruturais que não implicam, necessariamente, em evolução
organizacional.
i
ARANTES, Paulo E.Hegel. Coleção “Os Pensadores”. São
Paulo: Nova Cultural, 2000, p.15.
ii
KANT, CRP, Martin Claret, 2001, p. 21.
iii
HEGEL, Georg W.F. Enciclopédia das Ciências Filosóficas, vol
1. Lisboa: Edições 70, 1988, p. 79.
iv
HEGEL. Fenomenologia do Espírito. In: Hegel. Coleção os
Pensadores. Trad. Orlando Vitorino. São Paulo: Nova Cultural,
2000, p. 297.
v
Ibidem.
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