As quatro “genealogias” de Jesus
Genealogias explícitas: Mateus e Lucas
Muito ainda se discute
a respeito da evidente divergência entre as genealogias de Jesus apresentadas
por Mateus e Lucas: como explicá-la à luz da razão e dos fatos?
Para o cético mais
renitente, trata-se de um indício seguro da inautenticidade do Jesus histórico,
figura que muitos até hoje consideram lendária.
Para o crente mais
dogmático, é mistério inefável, insondável desígnio de Deus, a confundir o
entendimento e a exigir silencioso respeito e adesão incondicional.
Para o historiador
curioso, constitui fonte preciosa de análise comparativa entre uma narrativa
histórica efetuada por uma testemunha ocular (Mateus) e outra empreendida por
uma espécie de porta-voz ou repórter da experiência alheia (Lucas).
Para o gnóstico e o
místico, enfim, representa mensagem codificada a portar verdades profundas
inacessíveis ao leitor comum, mas passíveis de desvelamento após longa e
exauriente anamnese de números, símbolos e contextos.
Nos dois relatos
encontramos sequências de linhagens ascendentes parcialmente convergentes entre
si. E também achamos diferenças consideráveis, a ensejar longas e tormentosas
discussões.
A genealogia de política de Mateus:
Jesus como Messias
A genealogia de Mateus
possui natureza evidentemente política.
Sua função é a de
filiar Jesus à linhagem real e àquele que é considerado o fundador da pátria de
Israel: respectivamente, Davi e Abraão.
Logo de saída, ele se
refere a Jesus como “filho de Davi”, ou seja, como descendente direto do grande
rei de seu povo. Ele liga Jesus à soberania de seu povo, sonegada pelos
romanos.
Além disso, principia
sua árvore filogenética pela figura de Abraão: o grande patriarca. Outra
ligação, desta vez com a origem da nação, com sua essência primigênia: a comum
ancestralidade zelosamente cultuada.
É, no entanto, de se
perguntar: que sentido teria para Mateus esta apologia póstuma de Jesus?
Se ele por acaso
pertenceu ao número daqueles que pretendiam ver Jesus como rei de Israel, ainda
valeria a pena fazê-lo numa espécie de justificativa post-mortem?
Teria
ele a intenção de fazer uma espécie de necrológio de um rei usurpado?
É
de se notar que ele não começa sua contagem pelo começo do mundo, e sim pelo de
Israel.
Ademais,
ele finaliza chamando a atenção para uma regularidade: três sequências de
quatorze gerações, a separar quatro momentos: Abraão, Davi, a transmigração
babilônica e o nascimento de Jesus.
Os três primeiros
constituem capítulos decisivos da história política de Israel: o quarto momento
escaparia à regra geral apontada?
A genealogia religiosa de Lucas: de
Jesus até Deus
Diferentemente de
Mateus, o evangelista Lucas estabelece uma filiação de índole notadamente
religiosa.
O seu papel é o de
justificar o pregador, a autoridade de sua prédica, como ele próprio já disse
no prólogo dedicado a um certo Teófilo: “para que te convenças de quanta
confiança é merecedora a doutrina em que foste instruído”.
Note-se, de saída, que
Lucas não apresenta sua genealogia no início do relato, como o fizera Mateus.
Ela não está ali para prefigurar e justificar a história inteira de um homem,
mas a sua atividade e o seu legado.
Por esta razão, ele só
a descreve após a narração da infância e da mocidade de Jesus, com a finalidade
de dar conta daquele rabi que apareceu para a vida pública aos trinta anos.
Além disso, ele se
preocupa em remontar a Noé, Set e Adão, chegando ao próprio Deus, a Yaveh.
Nada mais adequado para
legitimar o portador de uma mensagem revelada junto a uma comunidade religiosa
já estabelecida.
Genealogias implícitas: Marcos e João
Como foi dito no estudo
anterior, Mateus e Lucas se incumbiram de apresentar, cada qual a seu modo,
genealogias de Jesus destinadas a propósitos probatórios específicos: o
primeiro, destinado a justificar o Massiach (Messias), o libertador prometido e
esperado; o segundo, o arauto da Boa Nova, o pregador espiritual, o portador de
nova Revelação.
Contudo, reparando
melhor, vemos que em cada um dos quatro Evangelhos canônicos há uma certa
espécie de “certidão de nascimento” do Profeta Nazareno – cada qual elaborada,
como já dito, segundo um método diverso; cada qual destinada a um fim
diferente. Em outras palavras, Marcos e João também buscarão justificar, à sua
maneira, a autoridade de Jesus.
A Genealogia Profética de Marcos
Marcos não inicia o seu
relato com informações sobre a família ou a ascendência de Jesus. Tampouco se
demora a narrar sua infância e formação. Ele parte relatando o aparecimento de
João Batista, considerado o Precursor, aquele que viria anunciá-lo e
chancelá-lo. Começa, pois, pelo anúncio antes de falar sobre o Anunciado, que
ele nomeia, sem mais rodeios, como o “Filho de Deus”. Frise-se, aliás, que sua
ênfase está na Mensagem: “O Evangelho de Jesus Cristo, o Filho de Deus, teve
princípio”.
Trata-se de uma
genealogia profética, em um triplo sentido: descreve a aparição de uma
revelação profética (o Evangelho de Jesus), prenunciada por um anúncio
profético imediato (a pregação de João Batista), e vinculada à profecia de
Isaías: “teve princípio como está escrito no profeta Isaías”.
Existe uma hipótese,
bastante acreditável, de que Marcos fora enviado por Paulo de Tarso para colher
o testemunho de Simão Pedro. Neste caso, o Evangelho de Marcos seria
fundamentalmente uma espécie de “Evangelho de Pedro a rogo”, o que não exclui a
possibilidade de ele ter complementado a narrativa de Pedro com outros
testemunhos.
Se for este o caso, o
modo como Marcos inicia seu texto se justificaria pela intenção de Simão Pedro,
então um dos líderes do Cristianismo “judaico”, da atividade apostólica
exercida em solo judaico nas Casas do Caminho, em mostrar a não-contrariedade
da Boa Nova em face da Lei Antiga.
Tal interpretação se
mostra razoável. Paulo, o apóstolo dos gentios, ex-perseguidor judeu convertido,
vislumbrava a dimensão da diferença existente entre Jesus e Moisés, e não
necessitava pregar o judaísmo junto com a palavra de Jesus. Já Pedro e outros
discípulos, que permaneceram em sua nação, necessitavam mostrar o nazareno como
um profeta da raça, como um reformador e não abolidor da fé antiga.
A Genealogia espiritual de João
Por fim, completando a
figura dos evangelhos canônicos, João também se refere ao surgimento de Jesus,
como o fizeram todos os evangelistas no início de seus relatos, mas com
particularidades inteiramente novas.
Como Marcos, ele também
aponta para a filiação divina do Anunciado. Porém, ele adentra no exame desta
paternidade e natureza divinas: “No princípio, era o Verbo... E o Verbo se fez
carne e habitou entre nós. E nós vimos a sua glória como Unigênito do Pai.”.
Ele já não se preocupa
com a legitimação profética de Jesus. Está mais interessado na proclamação de
sua originariedade e emancipação em face do legado hebreu: “Por Moisés foi dada
a Lei – por Cristo veio a verdade e a graça”. Como se vê, cuida-se também de
uma genealogia, mas genuinamente espiritual.
Deste modo, para João,
Jesus é mais do que o messias prometido, o portador da Boa Nova ou o profeta
profetizado: ele é o Filho de Deus, o Logos encarnado. Esta afirmação tem todo
um conjunto de pressupostos e implicações próprias, que serão apreciadas quando
do estudo deste evangelho em especial.
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