A interpretação que fizemos, no estudo anterior, da oração como
ato de silenciar, parece estar em severa contradição não só com o
que entendemos comumente por ela, como também com a própria origem
etimológica da palavra.
Segundo Huberto Rohden, orar deriva da palavra latina os (no
genitivo: oris), que significa boca. Orar, portanto, significa
abrir a boca.
Como conciliar este sentido original com a compreensão que estamos
buscando aqui? Como silenciar abrindo a boca, falando? Não seria
mais sensato pensar o contrário?
Um primeiro caminho para contornar a nossa dificuldade consiste em
rememorar um aspecto essencial da nossa reflexão precedente: sim,
orar é um ato que se exprime inicialmente pelo falar ou pensar,
mas que consiste num silenciar progressivo, e que mira o Silêncio.
Completando a idéia, poderíamos dizer: é um abrir a boca diferente
do falar cotidiano, um exprimir-se que se aproxima progressivamente
do calar-se.
Basta um pouco de atenção, porém, para ver que um tal
esclarecimento não basta. Afinal, se fosse apenas isto, orar não
poderia ser entendido como um simples ''abrir a boca'', mas como um
"abrir a boca e adiante fechá-la". Ou seja, um falar com
vistas a silenciar-se, como já concluímos.
E, então? Deveríamos retificar a nossa imagem aqui? Parece que sim,
pois, se começamos abrindo a boca, do corpo e da alma, com voz e
pensamento, com palavras e idéias, a verdade é que o objetivo final
é abandonar tudo isto: é fechar a boca, é parar a mente, é
aquietar a alma: é silenciar.
Assim, talvez nem seja preciso abrir a boca. Jesus, Francisco de
Assis, Gandhi e outros mestres que alcançaram os níveis mais
profundos da oração possivelmente sequer precisassem abrir a boca:
poderiam saltar, confiantes, no abismo insondável do Silêncio rumo
ao encontro com Deus.
Aliás, o divino Rabi da Galiléia já recomendava não se falar
muito durante a prece, já que o Pai conhece-nos profundamente e sabe
de nossas necessidades.
É neste ponto que desejávamos chegar. Convidamos o leitor a meditar
este aparente paradoxo: orar não é um falar e nem um pensar; se
exprime por meio de fala e pensamento, mas visa o silêncio; é, em
sua essência mais íntima, um silenciar, um caminhar rumo ao
silêncio; mas é um abrir a boca.
Diremos mais: é abrir uma boca que permanece fechada a maior parte
do nosso tempo. Uma boca que está fechada no início da prece, mesmo
quando estamos falando ou pensando. E que só se abre plenamente, no
ápice da prece, quando alcançamos o silêncio.
Esta boca, querido leitor, é a "boca" do Espírito.
Como já dito, precisamos calar o corpo e a alma para que o Espírito
em nós desperte.
Antes de prosseguir, gostaria de sinalizar algo bastante breve e
singelo sobre a relação da alma com o espírito, para que não se
pense que são dois seres disputando o espaço num só eu. Trata-se
de uma distinção que quase sempre pressentimos, sem a podermos
explicar.
O corpo é o mundo em mim, mas não sou Eu. É a minha parte mundana,
natural.
A alma sou Eu. É a minha individualidade.
O Espírito é Deus em mim, é mais que Eu. É a minha parte celeste,
divina.
Para a maioria de nós, na maior parte do tempo, o Espírito em nós
repousa. Dorme. Não fala.
Corpo e alma, porém, falam o tempo todo – muita vez até discutem
entre si.
Por aí se vê o quanto de empenho a alma desejosa de orar deve fazer
para alcançar o Silêncio.
Ao alcançá-lo, ela cala para que o Espírito fale. E, em mais um
belo paradoxo espiritual, a imagem que usamos até aqui se inverte:
este falar do Espírito é um autêntico escutar. Em silêncio.
Quando nossa Alma atinge o Getsêmani da prece, quando o Espírito em
nós desperta e fala, é Deus que fala em nós.
"Morro todos os dias, e é por isto que vivo. Mas já não sou
eu quem vive, é o Cristo que vive em mim" (Paulo).
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