Após
importantes esclarecimentos sobre as noções de Espiritismo e
de Alma, Kardec
prossegue no seu estudo introdutório indicando outro elemento
essencial: a origem histórica do espiritismo, o curso de eventos
cujo desenrolar progressivo culminou no estabelecimento da Doutrina
dos Espíritos, recolhida pelo Codificador, mediante um método já
estabelecido, dentro de uma práxis espírita mediúnica já
consolidada.
Kardec
classifica a Doutrina Espírita, o conjunto articulado de
ensinamentos trazidos por aquela plêiade de espíritos
codificadores, sob o comando do Espírito de Verdade,
como uma Filosofia Espiritualista.
Esta é a essência da
doutrina, a sua natureza – isto, obviamente, em se tratando do
Livro dos Espíritos. Não significa dizer que o Espiritismo se
adstrinja unicamente ao plano filosófico – como veremos
oportunamente, outras obras fundamentais da Doutrina possuem natureza
diversa, ora inclinando-se mais para o campo científico-empírico,
ora adentrando a esfera do pensamento teológico-religioso. É o tão
falado – e também muita vez mal entendido – aspecto tríplice da
Doutrina.
Em todo caso, já neste momento inicial, é crucial que se distinga a
Doutrina dos Espíritos e o modo histórico de sua aparição, a sua
essência mais profunda e o fenômeno que a manifestou no seio da
cultura européia novecentista. Não por acaso, após dois tópicos
dedicados a questões terminológicas, Kardec passa a analisar o
processo histórico de formação do Espiritismo.
A
Doutrina revelada em O Livro dos Espíritos
é, sem dúvida, uma Filosofia Espiritualista.
Mas, terá ela surgido historicamente como uma filosofia, ou mesmo
como uma religião?
Ela não veio ao mundo na forma de uma Filosofia, de um sistema de
pensamento oriundo de longa e acurada reflexão do professor Rivail.
Tampouco surgiu imediatamente nos mesmos moldes de uma Religião, de
uma verdade transcendente revelada.
Seu
surgimento paulatino se deu a partir da eclosão inexplicada do
fenômeno das mesas girantes,
que atraiu a curiosidade científica de muitos investigadores, dentre
eles o que futuramente assumiria a alcunha de Allan Kardec e
exerceria o papel de Codificador.
Acompanhando
Kardec, vemos o desenrolar do processo: primeiro, o espanto diante do
aspecto físico do
fenômeno, o fato de que mesas e outros objetos pesadíssimos
flutuavam no ar, se punham a girar e a produzir movimentos sem
aparente intervenção humana.
Antes
de avançar, porém, façamos uma pausa para destacar um aspecto
importante: na época em que começou a investigar os referidos
fenômenos, o professor Rivail era adpeto de uma corrente
filosófico-científica denominada Positivismo, criada
pelo seu conterrâneo August Comte algumas décadas antes. Esta
filosofia defendia o primado da Ciência como forma suprema de saber,
e preconizava que o objeto de toda ciência deveriam ser os fatos, e
nada mais. Toda ciência genuína deveria partir da observação e da
experimentação, mediante um rigoroso método científico, de modo a
testar hipóteses e teorias obtendo leis.
Isto tem levado historiógrafos do pensamento científico ou
filosófico, vez por outra, a considerar o Espiritismo como um fruto
direto do Positivismo, totalmente identificado com seus princípios
e fortemente influenciado em seu conteúdo.
Alguns, inclusive, chegam a supô-lo fenômeno histórico superado,
como o Positivismo hoje em dia.
Nota-se,
em tal modo de pensar, dois comuns equívocos do pensamento, aos
quais o estudioso espírita deve compreender para evitar: a confusão
entre condição e causa,
e entre origem e essência.
O fato de determinada iguaria ter sido preparada em panela de barro
ou de metal não a torna, só por isto, barrossa ou metálica.
Muita vez, o
conhecimento adquirido por um cientista através da aplicação de
determinado método sobrevive ao próprio método.
Inúmeras
verdades oriundas do século de Galileu, muito anteriores ao próprio
Positivismo, permanecem até os dias de hoje. Algumas delas precedem,
inclusive, até mesmo a noção moderna de método científico.
Além
do mais, note-se que a
gradativa transição entre o professor Rivail investigador dos
fenômenos ditos magnéticos
ao Kardec estudioso dos já evidentes fatos espíritas
implicou significativas mudanças na metodologia adotada.
Veja-se,
por exemplo, o chamado Controle Universal dos Ensinamentos
dos Espíritos, instância de
verificação da validade de afirmativas e hipóteses obtidas
declarativamente dos espíritos por via medianímica, e que
contradiz, a princípio, o imediatismo da comprovação
empírico-positiva.
Diga-se,
portanto, de forma conclusiva: nem a origem histórica das
investigações empírico-positivas se confunde com a essência
supra-histórica da Doutrina dos
Espíritos, nem tampouco o método positivo, enquanto condição
inicial da investigação, deve
ser confundido com a causa espiritual da
mensagem revelada, que são os próprios espíritos codificadores.
Aliás,
o sempre lúcido Kardec, em momentos diferentes de sua obra, teve
oportundiade de exercitar diferentes métodos de abordagem ao
longo da codificação. Daremos quatro exemplos.
Em
O Livro dos
Espíritos, mostra-se o método
propriamente espírita, de controle e verificação dos ensinamentos
dos espíritos, recolhidos por Kardec num papel mais passivo de
perguntador, organizador e comentador. Tal método guarda alguma
semelhança com os métodos da Religião,
uma vez que se trata de uma verdade revelada pelos espíritos, mas
com um controle racional rigoroso do investigador encarnado que a
obtém, analisa e classifica.
Em
O Livro dos Médius,
um Kardec mais positivista entra em cena, o estudioso que presenciou
milhares de comunicações espíritas, classificando os tipos de
mediunidade, descrevendo a fenomenologia de cada uma, indicando
prescrições metodológicas para a realização dos trabalhos, como
verdadeiro cientista longamente habituado com o fenômeno de que se
ocupa.
A Gênese,
por sua vez, apresenta um caráter híbrido bastante interessente,
com um caráter mais hipotético que teórico, na qual temos a
oportunidade, por exemplo, de presenciar um cientista desencarnado
(Galileu) em ação, elaborando hipóteses sobre certas realidades
(como sobre o que há no lado oculto da Lua), sem pretensão de
definitividade, submetendo-as ao crivo da verificação e
experimentação como qualquer cientista terreno.
Céu e
Inferno já exibe um método
genuinamente filosófico, pautado na abordagem direta a temas, idéias
e teorias clássicas, com análise de suas implicações, confronto
com os novos postulados e axiomas trazidos pela Doutrina dos
Espíritos, e extração lógica das consequências das novas idéias
sobre pontos fundamentais da teologia cristã até então.
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