Meditamos sobre a prece a partir da imagem do "abrir a boca".
Procuramos entendê-la como um falar de tipo especial – um falar
sem palavras, e mesmo sem idéias. Um falar do espírito, que
consiste, misteriosamente, num profundo escutar. Um falar do Deus em
nós.
Contudo, a imagem empregada pode ser refletida a partir de uma
perspectiva diferente, mas igualmente importante. Além do falar,
outras atividades essenciais ao homem se exercem pelo abrir a boca: o
respirar e o comer. De certa maneira, a oração se assemelha a cada
uma delas.
Falar, respirar, comer. Destes três atos, os dois últimos são
indispensáveis à vida do corpo, enquanto o primeiro é crucial para
a vida da alma: sem ter acesso à fala, à comunicação humana de
uma maneira mais ampla, o homem reduz-se completamente à sua
dimensão animal.
A prece, ao fazer com que em nós o Espírito desperte e fale, nos
humaniza espiritualmente.
Com a evolução natural, tornamo-nos humanos ao nível do corpo, com
o surgir da Espécie humana.
Com a evolução cultural, tornamo-nos humanos ao nível da mente,
com o surgir da Civilização.
A prece é um dos fatores cruciais da evolução espiritual,
tornando-nos humanos ao nível do Espírito, com o despertar da nossa
Individuação.
A Espécie Humana é uma universalidade biológica, à qual todos
partilhamos do mesmo modo.
A Civilização é uma particularidade cultural, compartilhada entre
os povos de modo variado, no espaço e no tempo.
A Individuação é uma singularidade pessoal, conquista solitária
de cada um de nós, inda que com a ajuda amorosa dos que caminham
conosco ou dos que, do alto, velam por nossos caminhos.
A maioria de nós, submetida totalmente às injunções do corpo, não
enxerga qualquer utilidade ou função para a prece – salvo o de
obter comodidades materiais, ou alívio para os males e dores do
corpo. Todavia, como consegue cuidá-los ou remediá-los unicamente
pelo agir do mundo, não se recorda da oração, a não ser que tudo
o mais falhe.
Uma parte menor, que já escuta os apelos da alma, já atribui peso e
importância à prece. Mas ainda a entende como uma espécie de via
sacrificial, de esforço contrário ao mecanismo do pensar, de
tentativa quase sobre-humana de elevação em face da vida mental
ordinária. Para estes, a prece é um meio de purificação do homem,
e talvez cheguem a pensar que homens puros necessitem menos da prece
do que aqueles que arrastam consigo corpo e alma cheios de mazelas e
vícios.
Aqueles, porém, que já despertaram para o reino divino do Espírito,
compreendem o sentido verdadeiro da prece: não mais como recurso
eventual de socorro na aflição nem como atividade sacrificial de
purificação ou penitência, e sim como um modo natural de ser e
atuar na dimensão interior do Espírito.
Orar, portanto, é um abrir a boca, mas não para falar: e sim para
respirar espiritualmente, e sim para nutrir-se com o manjar do
espírito.
O grande filósofo Hegel, após recordar que o viajante no deserto
suspira por uma simples gota d'água, arremata com tristeza: "A
grandeza da perda do Espírito se mede pela pequenez daquilo com que
ele se contenta".
Imaginemos que penúria espiritual a nossa!
Nós, que sequer sentimos a fome do alimento do espírito.
Nós que, muita vez, atravessamos a vida sem participar da plenitude
do encontro com o sagrado nas longínquas alturas do Silêncio.
Nós, que não sentimos a falta do Deus em nós, concentrados
unicamente no que queríamos vê-Lo a fazer por nós.
Oramos, não para servir a Deus, mas para nos servirmos d'Ele.
Suplicamos pelas migalhas do mundo, renunciando, com isto, aos
tesouros do Céu.
Nas palavras do Cristo, tornamo-nos impuros pelo que nos sai da boca,
e sequer suspeitamos pelo que, através do silêncio e da prece,
poderia nos chegar através dela.
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